domingo, 24 de junho de 2012

Apimentando a relação – tradução e análise da música “Mexican divorce”, da Burt Bacharach Orchestra


Sabe aquelas músicas em inglês que você ouve e acha linda, e por achar linda também começa a achar que é romântica (especialmente se identifica palavras como love e heaven), e fica com a música no coração até o dia (SE este dia chegar, porque pra alguns nunca chega) em que você adquire um rudimentozinho a mais de inglês numa CNA da vida, vai atrás da tradução no letras.terra e descobre que a música não tem nada a ver com o que você imaginava? Sempre uso “Tears in heaven”, do Eric Clapton, como exemplo magistral, mas esta dispensa uma análise mais profunda, neste momento.

A bola da vez é uma música beeeem de “tiozão”, destas que só tocam de madrugada na Alpha FM ou na Antena 1 E OLHE LÁ!






Letra original (a do vídeo pode conter erros):

Down below El paso lies Juarez
Mexico is different, like a travel folder says
Cross the rio grande and you will find
An old adobe house
where you leave your past behind

One day married, next day free
Broken hearts for you and me
Takes no time, for you to get
A mexican divorce

As i came into this lonely house last night
I looked at all my windows but i couldn't find one light
I found you on that road to mexico
And now, my love, i beg
Please, oh, please, don't go

One day married, next day free
Broken hearts for you and me
Takes no time, for you to get
A mexican divorce
Finding love takes so long
Walking out must be wrong
It's a sin for you to get a mexican divorce
Pra baixo de El Paso, fica Juarez
“O México é diferente”, como diz o folder de viagem
Cruze o Rio Grande e você vai encontrar
Uma choupana de pau-a-pique1
Onde você deixa seu passado pra trás

Num dia casado, no outro livre
Desilusões2 pra você e pra mim
Não demora pra você conseguir
Um divorcio mexicano3

Assim que cheguei nesta casa vazia4 na noite passada
Olhei em todas as minhas janelas e não encontrei nenhuma luz
Te encontrei naquela estrada para o México
E agora, meu amor, eu imploro
“Por favor, oh por favor, não vá”

Num dia casado, no outro livre
Desilusões pra você e pra mim
Não demora pra você conseguir
Um divorcio mexicano
Encontrar o amor leva tanto tempo
Fugir dele deve ser errado
É um pecado fazer um divórcio mexicano



Notas da proposta de tradução:
1 – A tradução literal seria “casa velha de adobe”. Adobe é o nome mais comum na África e na América do norte para o que chamamos no Brasil de “pau-a-pique”, ou seja, construções de barro com armações de madeira;
2 – Broken heart (coração partido), no inglês, é também o equivalente ao que chamamos de desilusão ou decepção amorosa;
3 – A tradução literal foi conservada, mas se a intenção fosse dar um reforço poético à expressão, poderia se usar a forma “divórcio à mexicana”, tal como se usa em uma receita (ex.: pato à caçadora, bife à milanesa, etc.);
4 – Literalmente, casa solitária. Mas o uso do termo relativo à solidão é para indicar que não há mais ninguém dentro dela além do eu-lírico.

A música foi composta originalmente para o grupo The Drifters. Segue a versão original, para quem quiser conferir:



O tema é o divórcio mexicano. E o que ele tem de diferente dos outros, especialmente do americano? Segundo a edição de 27 de dezembro de 1963 da revista Time, “um divórcio mexicano era mais rápido, fácil e barato do que nos EUA”. E o melhor: não exigia a presença dos cônjuges, que poderiam ser representados pelos seus respectivos advogados. Celebridades como Johnny Carson, Katharine Hepburn, Richard Burton, Elizabeth Taylor, Marilyn Monroe e Don Hewitt já recorreram a esta solução. E, mesmo havendo recomendações da justiça federal americana, muitos tribunais e pequenas comarcas mexicanas ainda aceitam divórcios do outro lado da fronteira.
  
Foto panorâmica da fronteira El Paso (esq.) e Ciudad Juarez (dir.)


Grande parte de nós sabe que é praticamente impossível um mexicano cruzar a fronteira para o lado americano, mas seus vizinhos podem fazer esta travessia à vontade, especialmente como turistas ou empresários. Só que tudo no México é mais relaxado, decadente, liberado, “pobre” mesmo, do ponto de vista do americano. Em contraponto, o país “rejeitado” costuma oferecer incentivos utilizando-se de alguns destes aspectos, principalmente no que se refere ao turismo. Portanto, em muitos contextos, descer “para baixo de El Paso” é uma ação encarada como uma transição para um estado inferior ao anterior.

Cruzar a fronteira, o “Rio Grande” e deixar o passado em uma velha choupana (sim, naquela época os pequenos juizados e tribunais não passavam de casinhas de adobe, tamanha a pobreza do interior do país) é também uma tentativa de garantir que este passado lá fique, incapaz de cruzar a fronteira e o rio tal como o humano que o abandonou. O próprio divórcio é uma divisa, barreira, muro separador. Dividem-se bens, territórios, áreas de atuação. Tudo na música vai remeter à isotopia da divisão.

A divisão liberta (casamento se opõe a libertação na música). Mas o coração também se divide, se parte, libertando sentimentos de perda, tristeza pelo fim, arrependimentos, tudo o que poderia estar contido quando ainda se tentava fazer a relação sobreviver. E é tudo rápido, como cortar quando se tem a faca e o queijo na mão. São estes sentimentos que vão motivar a composição da música em si.

Se a primeira parte dá a ideia e o processo de um divórcio mexicano, como se o abandonado da relação “ensinasse” ao que quer rompê-la como fazer, na segunda este abandonado, o eu-lírico enunciador, descreve o que acontece após tal ato. Ele chega em sua casa vazia e não encontra uma luz sequer. É tudo escuro, sem luz. Que luz seria esta? A da vida, do amor, do calor da outra parte da relação? Dividido e na escuridão, só resta ao enunciador ir atrás do seu amor. E ele o encontra no caminho para o México. E, tomado pelo arrependimento, ele implora “Por favor, não vá”, numa tentativa de evitar a divisão.

Moral da estória: relacionamentos construídos durante anos não deveriam ser encerrados instantânea e unilateralmente. Dificuldades devem ser enfrentadas conjuntamente pelo casal para que o amor sobreviva e triunfe. Afinal, se “encontrar o amor leva tanto tempo”, “fugir dele deve ser errado” e um divórcio à mexicana se torna “um pecado”.

Isto era o que a música queria transmitir.

A realidade acabou se desdobrando em outras facetas. Todos os divórcios dos artistas citados acima envolviam episódios de medição de forças, incompatibilidade de gênios e, principalmente, infidelidade. A maior parcela das profissões artísticas modernas (ator, cantor, modelo, etc.) envolve o uso do corpo e da “alma” (manipulação da própria personalidade seria um melhor termo) como ferramentas de trabalho. A partir do momento em que há uma desvinculação entre corpo e alma e outra entre ação e executor, o indivíduo adquire maiores liberdades. Não foi o ator que beijou a atriz, mas o personagem dele que beijou o personagem dela. Os corpos foram apenas “emprestados”, entendem? Da mesma forma, um cantor não está desiludido com uma paixão que terminou, mas ele canta como se estivesse, pois assume a mesma postura de várias pessoas que passam pela mesma situação. Ele empresta a própria voz à alma de seu público.

Assim, funda-se na hipocrisia a manipulação do corpo e da personalidade para fins artísticos. E este upgrade de performance torna o indivíduo mais livre do que a massa em geral. Mas ele não pode exercer esta liberdade publicamente; há espaços propícios para tal, livres das câmeras e dos holofotes. Em público, o artista vê-se obrigado (inclusive pelos seus empresários ou por poderosos da mídia) a forjar um papel público e “ficcionalizar” o próprio cotidiano, visto que seus reais comportamentos livres não seriam aceitos do ponto de vista da moral pública e nem poderiam servir de âncora ou espelho para modificação da mesma.

Por isso se reprime na grande massa o uso de drogas, enquanto nos estúdios e salões a cocaína é o “pão com manteiga” de artistas que enfrentam até 18 horas diárias de trabalhos repetitivos e desgastantes (quem já passou som de show ou ensaiou uma cena mais de 20 vezes sabe como é difícil – aliás, a cocaína é uma metonímia, OK?). Por isso se mantêm casamentos “de fachada” pregando prosperidade, fidelidade e religiosidade como componentes de um modelo de felicidade a ser almejada e batalhada pelos indivíduos, quando estes enlaces ocultam comportamentos plurissexuais e/ou antissociais que seriam encarados como “bizarros” numa sociedade que só começou a ter real controle científico desta performance vital a partir dos anos 70. Assim, para diversos membros da ultraelite americana, o divórcio à mexicana foi (e ainda é) um excelente recurso para finalizar um casamento, tenha sido ele por amor ou por conveniência, “sem dor”, como uma ruptura de uma sociedade empresarial.

Assim, a música tornou-se um hino de desincentivo a tal prática, pregada como imoral, embora ainda adotada por quem “podia”, do ponto de vista sociológico. E agora você pensa: “mas porque parece baladinha romântica”?

O bolero se consolidou como ritmo dançante lento nos anos 60. É basicamente este o ritmo da música, embora o Burt tenha feito um arranjo melhorado com sua orquestra. A música pode ser tanto dançada por um casal que porventura esteja tentando se reconciliar (porque incute o medo do divórcio nos dois) quanto somente escutada por um(a) separado(a) que esteja afogando as mágoas numa garrafa de whisky. Nada a ver com romantismo, como constantemente nós, brasileiros, erroneamente interpretamos qualquer canção anglófona mais lenta e melosa. Mas, também, quem é esse pessoal que fica tentando nos impor sua cultura e sua arte quando nós podemos ficar cantando felizes em nossa própria língua sobre o que sentimos, pensamos e queremos? Se bem que aqui no Brasil também não faltam exemplos de música como manipulação ideológica, como na primeira postagem deste blog...

P.S.: Ciudad Juarez, no México, é considerada hoje pela ONU a cidade mais violenta do mundo. Mas isto é só um P.S., nem encane.





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