Sabe aquelas músicas em inglês que você ouve e acha linda, e
por achar linda também começa a achar que é romântica (especialmente se
identifica palavras como love e heaven), e fica com a música no coração
até o dia (SE este dia chegar, porque pra alguns nunca chega) em que você
adquire um rudimentozinho a mais de inglês numa CNA da vida, vai atrás da
tradução no letras.terra e descobre que a música não tem nada a ver com o que
você imaginava? Sempre uso “Tears in heaven”, do Eric Clapton, como exemplo magistral,
mas esta dispensa uma análise mais profunda, neste momento.
A bola da vez é uma música beeeem de “tiozão”, destas que só
tocam de madrugada na Alpha FM ou na Antena 1 E OLHE LÁ!
Letra
original (a do vídeo pode conter erros):
Down below El paso lies Juarez
Mexico is different, like a travel folder says Cross the rio grande and you will find An old adobe house
where you leave your past behind
One day married, next day free
Broken hearts for you and me Takes no time, for you to get A mexican divorce
As i came into this lonely house last night
I looked at all my windows but i couldn't find one light
I found you on that road to mexico
And now, my love, i beg Please, oh, please, don't go
One day married, next day free
Broken hearts for you and me Takes no time, for you to get A mexican divorce
Finding love takes so long
Walking out must be wrong It's a sin for you to get a mexican divorce |
Pra baixo de El Paso, fica
Juarez
“O México é diferente”,
como diz o folder de viagem
Cruze o Rio Grande e você
vai encontrar
Uma choupana de
pau-a-pique1
Onde você deixa seu
passado pra trás
Num dia casado, no outro
livre
Desilusões2 pra
você e pra mim
Não demora pra você
conseguir
Um divorcio mexicano3
Assim que cheguei nesta
casa vazia4 na noite passada
Olhei em todas as minhas
janelas e não encontrei nenhuma luz
Te encontrei naquela
estrada para o México
E agora, meu amor, eu
imploro
“Por favor, oh por favor,
não vá”
Num dia casado, no outro
livre
Desilusões pra você e pra
mim
Não demora pra você
conseguir
Um divorcio mexicano
Encontrar o amor leva
tanto tempo
Fugir dele deve ser errado
É um pecado fazer um
divórcio mexicano
|
Notas da proposta de tradução:
1 – A tradução literal seria “casa velha de adobe”. Adobe é
o nome mais comum na África e na América do norte para o que chamamos no Brasil
de “pau-a-pique”, ou seja, construções de barro com armações de madeira;
2 – Broken heart (coração
partido), no inglês, é também o equivalente ao que chamamos de desilusão ou
decepção amorosa;
3 – A tradução literal foi conservada, mas se a intenção
fosse dar um reforço poético à expressão, poderia se usar a forma “divórcio à
mexicana”, tal como se usa em uma receita (ex.: pato à caçadora, bife à
milanesa, etc.);
4 – Literalmente, casa solitária. Mas o uso do termo
relativo à solidão é para indicar que não há mais ninguém dentro dela além do
eu-lírico.
A música foi composta originalmente para o grupo The
Drifters. Segue a versão original, para quem quiser conferir:
O tema é o divórcio mexicano. E o que ele tem de diferente
dos outros, especialmente do americano? Segundo a edição de 27 de dezembro de
1963 da revista Time, “um divórcio
mexicano era mais rápido, fácil e barato do que nos EUA”. E o melhor: não
exigia a presença dos cônjuges, que poderiam ser representados pelos seus
respectivos advogados. Celebridades como Johnny Carson, Katharine Hepburn,
Richard Burton, Elizabeth Taylor, Marilyn Monroe e Don Hewitt já recorreram a
esta solução. E, mesmo havendo recomendações da justiça federal americana,
muitos tribunais e pequenas comarcas mexicanas ainda aceitam divórcios do outro
lado da fronteira.
Grande
parte de nós sabe que é praticamente impossível um mexicano cruzar a fronteira
para o lado americano, mas seus vizinhos podem fazer esta travessia à vontade,
especialmente como turistas ou empresários. Só que tudo no México é mais
relaxado, decadente, liberado, “pobre” mesmo, do ponto de vista do americano.
Em contraponto, o país “rejeitado” costuma oferecer incentivos utilizando-se de
alguns destes aspectos, principalmente no que se refere ao turismo. Portanto,
em muitos contextos, descer “para baixo de El Paso” é uma ação encarada como uma transição para um
estado inferior ao anterior.
Cruzar a
fronteira, o “Rio Grande” e deixar o passado em uma velha choupana (sim,
naquela época os pequenos juizados e tribunais não passavam de casinhas de
adobe, tamanha a pobreza do interior do país) é também uma tentativa de
garantir que este passado lá fique, incapaz de cruzar a fronteira e o rio tal
como o humano que o abandonou. O próprio divórcio é uma divisa, barreira, muro
separador. Dividem-se bens, territórios, áreas de atuação. Tudo na música vai
remeter à isotopia da divisão.
A divisão
liberta (casamento se opõe a libertação na música). Mas o coração também se
divide, se parte, libertando sentimentos de perda, tristeza pelo fim,
arrependimentos, tudo o que poderia estar contido quando ainda se tentava fazer
a relação sobreviver. E é tudo rápido, como cortar quando se tem a faca e o
queijo na mão. São estes sentimentos que vão motivar a composição da música em
si.
Se a
primeira parte dá a ideia e o processo de um divórcio mexicano, como se o
abandonado da relação “ensinasse” ao que quer rompê-la como fazer, na segunda
este abandonado, o eu-lírico enunciador, descreve o que acontece após tal ato.
Ele chega em sua casa vazia e não encontra uma luz sequer. É tudo escuro, sem
luz. Que luz seria esta? A da vida, do amor, do calor da outra parte da
relação? Dividido e na escuridão, só resta ao enunciador ir atrás do seu amor.
E ele o encontra no caminho para o México. E, tomado pelo arrependimento, ele
implora “Por favor, não vá”, numa tentativa de evitar a divisão.
Moral da
estória: relacionamentos construídos durante anos não deveriam ser encerrados
instantânea e unilateralmente. Dificuldades devem ser enfrentadas conjuntamente
pelo casal para que o amor sobreviva e triunfe. Afinal, se “encontrar o amor
leva tanto tempo”, “fugir dele deve ser errado” e um divórcio à mexicana se
torna “um pecado”.
Isto era o
que a música queria transmitir.
A realidade
acabou se desdobrando em outras facetas. Todos os divórcios dos artistas
citados acima envolviam episódios de medição de forças, incompatibilidade de
gênios e, principalmente, infidelidade. A maior parcela das profissões
artísticas modernas (ator, cantor, modelo, etc.) envolve o uso do corpo e da
“alma” (manipulação da própria personalidade seria um melhor termo) como
ferramentas de trabalho. A partir do momento em que há uma desvinculação entre
corpo e alma e outra entre ação e executor, o indivíduo adquire maiores
liberdades. Não foi o ator que beijou a atriz, mas o personagem dele que beijou
o personagem dela. Os corpos foram apenas “emprestados”, entendem? Da mesma
forma, um cantor não está desiludido com uma paixão que terminou, mas ele canta
como se estivesse, pois assume a mesma postura de várias pessoas que passam
pela mesma situação. Ele empresta a própria voz à alma de seu público.
Assim,
funda-se na hipocrisia a manipulação do corpo e da personalidade para fins
artísticos. E este upgrade de performance torna o indivíduo mais livre do que a
massa em geral. Mas ele não pode exercer esta liberdade publicamente; há
espaços propícios para tal, livres das câmeras e dos holofotes. Em público, o
artista vê-se obrigado (inclusive pelos seus empresários ou por poderosos da
mídia) a forjar um papel público e “ficcionalizar” o próprio cotidiano, visto
que seus reais comportamentos livres não seriam aceitos do ponto de vista da
moral pública e nem poderiam servir de âncora ou espelho para modificação da
mesma.
Por isso se
reprime na grande massa o uso de drogas, enquanto nos estúdios e salões a
cocaína é o “pão com manteiga” de artistas que enfrentam até 18 horas diárias
de trabalhos repetitivos e desgastantes (quem já passou som de show ou ensaiou
uma cena mais de 20 vezes sabe como é difícil – aliás, a cocaína é uma
metonímia, OK?). Por isso se mantêm casamentos “de fachada” pregando prosperidade,
fidelidade e religiosidade como componentes de um modelo de felicidade a ser
almejada e batalhada pelos indivíduos, quando estes enlaces ocultam
comportamentos plurissexuais e/ou antissociais que seriam encarados como
“bizarros” numa sociedade que só começou a ter real controle científico desta
performance vital a partir dos anos 70. Assim, para diversos membros da
ultraelite americana, o divórcio à mexicana foi (e ainda é) um excelente
recurso para finalizar um casamento, tenha sido ele por amor ou por
conveniência, “sem dor”, como uma ruptura de uma sociedade empresarial.
Assim, a
música tornou-se um hino de desincentivo a tal prática, pregada como imoral,
embora ainda adotada por quem “podia”, do ponto de vista sociológico. E agora
você pensa: “mas porque parece baladinha romântica”?
O bolero se
consolidou como ritmo dançante lento nos anos 60. É basicamente este o ritmo da
música, embora o Burt tenha feito um arranjo melhorado com sua orquestra. A
música pode ser tanto dançada por um casal que porventura esteja tentando se
reconciliar (porque incute o medo do divórcio nos dois) quanto somente escutada
por um(a) separado(a) que esteja afogando as mágoas numa garrafa de whisky.
Nada a ver com romantismo, como constantemente nós, brasileiros, erroneamente
interpretamos qualquer canção anglófona mais lenta e melosa. Mas, também, quem
é esse pessoal que fica tentando nos impor sua cultura e sua arte quando nós
podemos ficar cantando felizes em nossa própria língua sobre o que sentimos,
pensamos e queremos? Se bem que aqui no Brasil também não faltam exemplos de
música como manipulação ideológica, como na primeira postagem deste blog...
P.S.: Ciudad Juarez, no México, é considerada hoje pela ONU a cidade mais violenta do mundo. Mas isto é só um P.S., nem encane.
Nenhum comentário:
Postar um comentário