Quais as intenções de transmissão de significados que podem estar por trás de uma simples abertura de novela? Talvez as mesmas da novela inteira, sendo esta um mecanismo de permanente intercâmbio de expectativas e realizações ideológicas entre mídia e público. No entanto, estamos falando de entidades heterogêneas, ainda que constantemente referidas de modo reducionista como homogêneas.
Música completa:
Amarra o Teu Arado a uma Estrela
Se os frutos produzidos pela terra
Ainda não são
Tão doces e polpudos quanto as peras
Da tua ilusão
Amarra o teu arado a uma estrela
E os tempos darão
Safras e safras de sonhos
Quilos e quilos de amor
Noutros planetas risonhos
Outras espécies de dor
Se os campos cultivados neste mundo
São duros demais
E os solos assolados pela guerra
Não produzem a paz
Amarra o teu arado a uma estrela
E aí tu serás
O lavrador louco dos astros
O camponês solto nos céus
E quanto mais longe da terra
Tanto mais longe de Deus
A canção foi composta e gravada por Gilberto Gil em 1989, em
duas versões: uma para o álbum “O eterno deus Mu dança”, do mesmo ano, outra
para a trilha sonora da novela “O salvador da pátria”, da Rede Globo, no mesmo
ano. A novela falava do boia-fria Sassá Mutema, joguete de políticos poderosos
que acaba por ser tornar também político, mas trabalhando mais para o povo do
que para os poderosos. Sendo 1989 o ano das primeiras eleições
diretas para presidente após o fim da ditadura militar, a figura de Sassá foi
vinculada à do principal líder da esquerda nacional, o metalúrgico e
sindicalista Luís Inácio “Lula” da Silva. A música ajudaria significativamente,
portanto, num plano de propaganda política e partidária antecipada às eleições.
O que tentarei neste texto, baseado em um artigo ao Prof. Dr. Waldir Beividas
na área da semiótica aplicada, é criar um subsídio de informações articuladas que
permitam que tal asserção anterior possa ser defendida, visto que nenhuma das
partes envolvidas (o compositor, o autor e os coautores da novela, a emissora,
as entidades políticas) assume isto, mantendo tal informação no campo das
especulações interpretativas.
Na análise, usaremos recursos da semiótica (do grego σημειωτικός
(sēmeiōtikos) literalmente "a ótica dos sinais"), descrita na
Wikipédia como ”a ciência geral dos signos e da semiose que
estuda todos os fenômenos culturais como se fossem sistemas sígnicos, isto é,
sistemas de significação”. Na semiótica, tudo significa alguma coisa, e nenhum
significado deve ser desprezado (coçar a cabeça do nada, por exemplo, pode
significar não entendimento de uma palavra, frase ou cena visual, ou acometimento
por caspa, seborreia ou outra doença do couro cabeludo, entre outras hipóteses.
E se você despreza o fato, para a semiótica, saber se foi coçado com a mão toda
ou só um dos dedos pode fazer toda a diferença na interpretação de tal gesto).
Esta ciência está presente não só nos estudos linguísticos (sua origem), como também
na publicidade, no jornalismo, na arquitetura, etc. Outra coisa importante a
saber é que a semiótica considera todo empreendimento dinâmico terrestre como
uma busca sujeito-objeto. E todo ser vivo alternará entre as posições de
sujeito e objeto (ou exercerá simultaneamente as duas) até o final de sua
existência (ou mesmo depois dela – um ser morto pode servir de alimento para
outros seres vivos, as ideias de uma pessoa podem permanecer “vivas” após a sua
morte, com outras pessoas buscando-as permanentemente).
Pois bem. Notamos que o eu-lírico enunciador tenta persuadir
um homem do campo a “amarrar o teu arado a uma estrela“. Podemos afirmar que o
destinatário é um homem do campo, pois nos saltam aos olhos diversos elementos
da temática agrária (campos, safras, frutos, solos) que vão construindo uma
paisagem semântica que neste momento chamaremos de isotopia (é como se os termos fossem desenhando um cenário
contextual – neste caso, uma grande fazenda – dentro da tua imaginação enquanto
ouve a música). O próprio destinatário é referido como lavrador e camponês.
Esta primeira charada foi morta facilmente; veremos as outras.
Reconhecido o sujeito lavrador, logo, o objeto (ou, o programa narrativo habitual) do mesmo é
a colheita. E ela é cheia de revezes: sendo os campos “duros demais”, os frutos
não são “tão doces e polpudos quanto as peras da tua ilusão”. Mais: “os solos
assolados pela guerra não produzem a paz”. Vemos aqui uma oposição entre o
real/material (frutos da terra), e o ideal (as peras da ilusão – recordando que
as peras, segundo Homero, são consideradas “presente dos deuses”, ou seja, são
as frutas do paraíso – o ideal – na tradição grega). Esta ilusão é criada pelo
próprio destinatário (tua ilusão);
algo que parece ser real ou possível, mas não é (ilusão = o parecer e não ser
do quadrado semiótico). Esta oposição
entre real e ideal permeará todo o conteúdo da música. Enfim, falha
constantemente o empreendimento objetual do lavrador, e é em cima desta
frustração que o eu-lírico irá argumentar.
A persuasão seguirá uma estrutura “se... então” (os
programadores se encontraram aqui, né?): Numa visão geral, “se ação x gera y,
ação w gerará z”, O “amarrar o arado” (elemento metonímico da força de trabalho na
agricultura) proposto daria resultados com os tempos, o que caracteriza um
contrato e uma espera fiduciários (ou seja, relativos à fé e à esperança) que
se converteriam em safras de sonhos e quilos de amor em outros planetas, e é
nessa hora que se reconhece uma estrela que não fica parada como as outras, mas
que se move, podendo assim transportar o lavrador para outros planetas risonhos
(portanto, alegres e receptivos), outras Terras (equivalência entre terra –
elemento sólido e Terra – planeta) que não a sua, onde outras espécies de dor
(e não as mesmas de sempre) surgirão como metonímia de novos desafios e
resultados. Aqui também vemos desenhar-se outra isotopia: a da idealização
(batismo aproximado, podendo dizer-se também sobre uma isotopia do sentimento),
por compreender também elementos que remetem a capacidades cognitivas relativas
a estados de reflexão ou de espírito (ilusão, sonhos, amor, loucura, paz). Desta
forma, o destinador (o sujeito que
manipula, que persuade outro a fazer algo por ele – neste caso, o eu lírico)
tenta incutir no destinatário, agora sujeito
também, um querer buscar novos objetos diferentes dos quais ele tem de
lidar constantemente. E melhores, claro.
Decifrar a primeira parte da música já é 80% do caminho
andado; agora é reconhecer que a segunda parte é uma amplificação da
argumentação da primeira, visto que a isotopia da idealização se faz muito mais
presente do que a agrária e os objetos não são mais simples alimentos, mas
possíveis respostas a anseios da humanidade.
Agora não é mais a apenas uma figura (o fruto) que o
destinador se refere, mas a ESPAÇOS (campos e solos), ou seja, o destinador
ampliou seu espectro de atuação para começar a ampliar o poder de sua
argumentação. Também já não é mais a questão de um fruto não ser
suficientemente doce e polpudo – o espaço (campo) dificulta (ou, praticamente,
impede: é duro “demais” pra se realizar tal ação) o desenvolvimento daquele que
pode ser considerado o principal programa narrativo /actancial do lavrador: o
cultivo. E o pior: esta dureza é produto de solos assolados (arrasados,
destruídos) pela guerra, o que torna estes solos inférteis justamente para a
produção de seu oposto: a paz! Aqui, guerra e paz se opõem como praga e fruto:
uma vem sem ser convidada e devasta tudo, a outra é plantada e precisa de tempo
e recursos para ser colhida.
Ninguém precisa ser muito esperto pra reconhecer que a paz é
almejada pela humanidade em geral (o primeiro dia de todo ano é o dia da paz
universal reconhecido mundialmente). Se antes se falava da mera oposição entre
realidade e idealização, agora se fala da impossibilidade de produção de um bem
necessário e almejado pela humanidade e pelo indivíduo. E, no polo do “então”,
o “amarrar o arado à uma estrela” agora propõe resultados ainda mais
expressivos: o desbravamento de espaços ainda mais amplos que tuas terras
(astros e céus), do modo que melhor julgar (loucura e soltura). E com um
detalhe importante: “Quanto mais longe da Terra, tanto mais longe de Deus”.
Esta última asserção é, certamente, a mais polêmica da
música. Usualmente a visão religiosa do catolicismo rural brasileiro (na
verdade, do catolicismo mundial) prega a existência de um Deus que está nos
céus. Seguindo esta lógica, afastar-se da Terra (pegando “carona” numa estrela
e viajando pelos céus) significaria ir cada vez mais perto de Deus. Ora, o
autor propõe justamente o contrário: a noção da existência de Deus reside
justamente na Terra, onde seus preceitos e mandamentos são aplicados. “Se Deus
não existisse, seria preciso inventá-lo”, escreveu certa vez Voltaire
(atribuição popular sem referência bibliográfica). Isto justificaria o “mais
longe da Terra, mais longe de Deus”. Os elementos anteriores reforçaram uma
isotopia do cerceamento, onde há meios recheados de anti sujeitos (campos
duros, solos assolados, rotinas desgastantes) que restringem o sujeito e
impedem o desenvolvimento de suas competências para a realização de um programa
narrativo. Logo, aqui, a religião, popularmente vista como “freio” da
humanidade, também atuaria como cerceador do ponto de vista moral, e o
afastamento dela como uma espécie de libertação moral.
Ora, oferecer espaços amplos, loucura, soltura e libertação
moral nos faz pensar que aquele que recebe a oferta não os possui, ou melhor,
possui o oposto destes (espaços restritos, retidão, cerceamento).
Enfim, podemos resumir os dois conjuntos de versos em duas
fórmulas:
Estrofe 1 - “Se está frustrado com tua realidade, que não é
a ideal da qual você gostaria de desfrutar, amarre o teu arado a uma estrela
que, com o tempo, terá resultados que superarão tuas expectativas e ideais”.
Estrofe 2 - “Se tua realidade não lhe proporciona o
necessário (e não mais apenas o ideal) para tua existência, amarra o teu arado
a uma estrela e terás uma existência superior às tuas expectativas”.
Juntando-se as duas estrofes, podemos estabelecer uma tabela
de oposições entre alguns elementos discursivos (tempo, espaço, aspecto,
figura, ação) com os quais o lavrador-destinatário lida e quais lhe são
oferecidos e por ele desejados, ou seja, uma oposição entre o real e o ideal:
Real
|
Ideal
|
Frutos comuns
|
Peras polpudas e
doces
|
Pouco sonho e amor
|
Safras de sonho e
amor
|
Rotina desgastante
|
Novos desafios
|
Campos duros e
solos devastados
|
Astros e céus
|
Regramento do
trabalho rural
|
Liberdade
|
Regramento moral-religioso
|
Afastamento da
religião
|
Regramento social
|
Loucura
|
“Mas ô Manjja, você enrolou, enrolou e não falou ainda o
que é amarrar o arado a uma estrela!”
Tá OK. Põe a bota que a gente vai botar o pé no pântano!
Grosso modo, uma análise semiótica geralmente é feita em
três níveis: o fundamental (onde se verifica a concretude ou aparência de tal
significante/objeto/ação), o narrativo (onde se verifica as relações entre
sujeitos, objetos e ações) e o discursivo (onde se verificam os papéis actanciais,
a dinâmica da enunciação, as isotopias e visões mais abrangentes de tempo,
espaço e ação no discurso). Navegar para um quarto nível oculto, o contextual, requer muitas “concessões”,
ou seja: tem que ser muito expert no
assunto pra poder fazer isto. Mas eu, mesmo nem tendo mestrado, não vejo outra
saída.
As informações que dei na postagem não foram à toa: elas te
situam, leitor, no contexto do lançamento da música e do álbum do cantor. Pra
ajudar a esclarecer mais, segue um trecho de uma entrevista com o autor da
novela, Lauro César Muniz:
André Bernardo - O que motivou você a escrever
"O Salvador da Pátria" em ano de eleições para presidente?
Lauro César Muniz - "O Salvador da Pátria" surgiu
de um Caso Especial que escrevi 15 anos antes, "O Crime do Zé
Bigorna". Costumo até dizer que Sassá Mutema é neto do Zé Bigorna!
(risos) "O Crime do Zé Bigorna" contava a história de um homem muito
simples, analfabeto, que era glorificado por matar o velho coronel da cidade.
Ele assume como herói o crime que não praticou. Na época, o especial foi
proibido pelo governo Médici e tive que ir até Brasília para negociar a
liberação dele. Anos depois, retomei a história, criei o Sassá Mutema a partir
da mesma história, mas fazendo o personagem evoluir, se alfabetizar e chegar a
prefeito! Isso foi em 1989, e o Lula era candidato à Presidência. Logo,
julgaram que eu pretendia fazer campanha do Lula através do Sassá.
AB - É verdade que a novela conseguiu desagradar tanto a
esquerda quanto a direita?
LCM - É sim. A esquerda achava que o personagem fazia referências ao Lula
e não gostava disso porque o Sassá Mutema era apresentado inicialmente como um
paspalho, um homem ingênuo. A direita, por sua vez, achava que, se Sassá
evoluísse e assumisse o poder, terminaria por fazer propaganda política para o
Lula. Acabei sendo bombardeado pelos dois lados.
AB - Na época, um executivo da Globo teria dito que o
autor de "O Salvador da Pátria" elegeria o próximo presidente da
República...
LCM - Pois é. Ouvi isso de diversas pessoas. Mas é claro que
não passava de um exagero, um absurdo. Mas não tive alternativa. Ou recuava, ou
abandonava a novela. E eu não cogitava a hipótese de abandonar a novela. Estava
completamente apaixonado por aquele personagem, o Sassá Mutema. Olha, duas
décadas depois, ainda não sei o que aconteceu. Esse episódio ainda é obscuro
para mim e acho que vou morrer sem saber o que houve. Talvez por isso "O
Salvador da Pátria" não seja uma das minhas novelas favoritas. As minhas
prediletas são "Escalada", "O Casarão" e "Espelho
Mágico". São as três que eu mais gostei de fazer. (entrevista na íntegra aqui)
Por outro lado, Gilberto Gil, na época, havia sido eleito vereador
em Salvador pelo PMDB, filiando-se ao PV em 1990 e conciliando propostas
políticas e de ONGs com a carreira de artista até tornar-se Ministro da Cultura
em 2003, no primeiro mandato do mesmo Lula que tentava se eleger presidente
desde 1989. De fato, Gil apoiou abertamente a candidatura de Lula em 2002.
Neste ano, estive em um show gratuito do cantor no Parque do Ibirapuera, na
capital de São Paulo, como parte da série “Pão Music” - promovida pelo grupo
Pão de Açúcar, em 11/10/2002. Gil apresentou-se vestido de branco e vermelho e,
em determinado momento, fez menção às cores de sua roupa e puxou a música
“Prelúdio”, de Raul Seixas – com os famosos versos “sonho que se sonha só é só
um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade” – a eleição
de seu apoiado no segundo turno ocorreria duas semanas depois. Tentei achar
imagens do show no YouTube, mas creio que naquela época ainda não havia tantas
câmeras digitais quanto há hoje.
NOTA POSTERIOR - O mesmo Gilberto Gil retornou ao Parque do Ibirapuera em 2014 em um show supostamente promovido pela Samsung conjuntamente com o Banco Itaú, desta vez, vestido de azul e com uma guitarra alaranjada, cores desta segunda instituição que apoiou abertamente a candidatura de Marina Silva e a tentativa de criação do "partido" Rede Sustentabilidade, cujo nome acabou transferido para a operadora de máquinas de leitura de cartões, em uma aula magistral sobre como fazer showmícios modernos de maneira o mais discreta possível (posto que são oficialmente proibidos) utilizando-se de conhecimentos em semiótica.
Lula é presidente até hoje (atualmente, presidência de honra) do Partido dos Trabalhadores, cujas cores são o vermelho e o branco e cujo símbolo é uma... estrela! OPA! PARA TUDO!
NOTA POSTERIOR - O mesmo Gilberto Gil retornou ao Parque do Ibirapuera em 2014 em um show supostamente promovido pela Samsung conjuntamente com o Banco Itaú, desta vez, vestido de azul e com uma guitarra alaranjada, cores desta segunda instituição que apoiou abertamente a candidatura de Marina Silva e a tentativa de criação do "partido" Rede Sustentabilidade, cujo nome acabou transferido para a operadora de máquinas de leitura de cartões, em uma aula magistral sobre como fazer showmícios modernos de maneira o mais discreta possível (posto que são oficialmente proibidos) utilizando-se de conhecimentos em semiótica.
Lula é presidente até hoje (atualmente, presidência de honra) do Partido dos Trabalhadores, cujas cores são o vermelho e o branco e cujo símbolo é uma... estrela! OPA! PARA TUDO!
Então Gilberto Gil sempre teve simpatia com a causa petista desde aquela época.
Agora faz todo sentido amarrar o arado, figura da força de trabalho na isotopia
agrária, a uma estrela (e não “a”
estrela, ou seja, há várias) – tendo um partido vários diretórios estaduais e
municipais, fica fácil atribuir o histórico bordão “filie-se ao PT” à causa, e
aí se manifesta a mais igualmente subliminar e fundamental das isotopias da
canção, a do trabalho.
Portanto, o apelo agora passa a ser entendido como dirigido
não só ao lavrador, mas aos trabalhadores em geral, e o autor-destinador-manipulador
agora passa à condição de sujeito que tem por objeto a agremiação do máximo
possível de pessoas que compartilhem de sua causa partidária. Cada indivíduo
objetivado tem como objeto, por sua vez, a melhoria de suas condições de
trabalho e de vida propostas como resultado do contrato fiduciário estabelecido
com o destinador superior. Um trecho da carta de princípios do partido soa bem
esclarecedor: “O PT define-se também como partido das massas populares,
unindo-se ao lado dos operários, vanguarda de toda a população explorada, todos
os outros trabalhadores – bancários, professores, funcionários públicos,
comerciários, boias-frias, profissionais liberais, estudantes etc. – que lutam
por melhores condições de vida, por efetivas liberdades democráticas e por
participação política”.
Mas isto ainda não é o bastante para definir se havia
intenções pró Lula na canção e na novela. O xeque-mate está em outra entrevista
do Lauro, desta vez para a Folha de S. Paulo, já em 2006:
Folha - O sr. disse que o governo pressionou a Globo para que Sassá Mutema,
de "Salvador da Pátria" (89), fosse modificado, já que estaria
promovendo a imagem de Lula. E, cá entre nós, havia mesmo uma inspiração no
candidato, não?
Muniz - Tinha um pouco sim. Eu me sentia sob pressão. Até algumas
pessoas do PT, que não tiveram paciência de esperar a virada de Sassá,
reclamaram que ele era manipulado e achavam que eu era a favor do Collor. Mas
Sassá ia se emancipar no processo. Eu não estava fazendo propaganda do Lula,
mas tentando analisar a tomada de consciência de um homem do povo. Nem votei
nele no primeiro turno, mas no Covas. Votei no Lula só no segundo.
Folha - O sr. não era ligado ao PT?
Muniz - Nunca fui. Sou de esquerda [risos]. Meu último partido foi o
Comunista, que deixei em 68, com o AI-5 [ato institucional nº 5, que endureceu
a ditadura militar]. E aí passamos a ver a novela como uma arma para
subliminarmente informar a população sobre o que acontecia no país.
Folha - Como seria o Sassá hoje?
Muniz - Não sei se daria para fazer o Sassá hoje. Acho que ele
teria um final trágico, e não um apoteótico como o da trama de 89. E a novela
se chamaria "O Traidor da Pátria" [risos]. Estou preocupado, foi uma
grande decepção, apesar de também não ter votado no Lula em 2002. Votei no
Serra. E eu não votei errado, não [risos]. (íntegra aqui)
10 – Por que o senhor disse que, se fosse refeita hoje, a
novela “O Salvador da Pátria” deveria ser chamada “O Traidor da Pátria”?
Em 1989, (ano de eleição para presidente em que disputaram o segundo turno
o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor), o personagem
Sassá Mutema, o Salvador da Pátria, foi associado ao Lula. Mas não fiz com a
intenção de criticá-lo. Agora, a piada de dizer “Traidor da Pátria” é em função
da grande decepção com esse governo e com o PT (Partido dos Trabalhadores). Já
tivemos alguns esclarecimentos, mas a situação ainda está por ser plenamente
explicada. (outra íntegra aqui, seu noveleiro enrustido!)
“Tá, e no que isso muda minha vida?”
Não é porque a novela tenha tido influência da formação
socialista/comunista do autor que toda a emissora tenha concordado e apoiado. A
novela foi encerrada antes da hora, com diversos “buracos” com relação à pauta
original, segundo o autor. Todo mundo que assistiu o documentário “Beyond
Citizen Kane” (Muito além do Cidadão Kane, em português) está consciente do
papel da Globo como a verdadeira TV estatal (e não a Cultura e a EBC, feitas “pra
UNESCO ver”), bem como da manipulação do debate entre Lula e Collor para que o
segundo candidato fosse mais bem-visto pelo eleitorado. Caso ainda não tenha
assistido o documentário e tenha saco e 2 horas de tempo livre pra tal, clique
aqui.
Lembremos também que foi a própria Record que disponibilizou
tal documentário na internet. E que contratou Lauro César pra fazer novelas
superiores às da Globo. O recado dado à União é basicamente este: “Queremos
trabalhar a teu favor. Mas se não toparem, trabalharemos contra”.
Manipulação midiática dá muito dinheiro. É uma ferramenta
que todo sistema governamental precisa ter para fins de coesão ideológica e
coerção moral. Pra quem acha que 89 tá “lá atrás” (pressuponho que alguns
leitores nem tenham nascido ainda, quanto mais assistido a novela), lembrem que
há apenas 4 anos atrás a novela “Duas caras” fez uma paródia megatosca da
ocupação da reitoria da USP na greve multisetorial de 2007, ridicularizando o
ocorrido. E praticamente nenhum canal fala da atual temporada de greve por luta
salarial em 48 universidades federais do país.
Mas o povo também pode escapar massivamente destas rédeas,
produzindo resultados que vão da revolução à tragicomédia. O eleitorado que pôs
Lula no poder depois de 18 anos de direita é o mesmo que elegeu o palhaço Tiririca
em tom de protesto e descrença total no sistema político nacional em seu status
atual. Afinal, de que adianta um político acusado de corrupção ser preso numa
novela enquanto os reais podem fazer um processo cível ou criminal tramitar por
até 27 anos na justiça até a execução da sentença e aguardarem este período
todo em liberdade?
Não estou fazendo aqui nenhuma apologia ou crítica
partidária. Respeito as posições partidárias de meu amigos, parceiros e colegas
de trabalho. Também tenho amigos que tanto adoram assistir novelas para
utilizarem como recurso educacional ou mesmo mera diversão quanto não querem
nem chegar perto de qualquer TV ligada. Mas uma postagem desta é bem oportuna
para um ano de olimpíadas e eleições. Atente a tudo que tentarão lhe dizer nas músicas em geral,
mesmo que leve algum tempo pra você captar a real mensagem. E não pense que é
só nos jingles de campanha que política e música se encontram...
Ah muito obrigada mesmo pelo desvendar dessa música. Eu e minha família nos mudamos pra outra cidade e estamos morando na casa da minha sogra até a nossa ficar pronta e ela adora ver novelas reprisadas no Viva e justamente está reprisando O Salvador da Pátria e desde quando eu ouvi a primeira vez a abertura da novela quando ela vê fiquei encucada com a letra, ouvi a segunda e a terceira e falei comigo mesma: caramba desde essa época já existia campanha incutida nas novelas pra o PT e o Lula, isso na minha mente lembrando que quem cantava a música era o Gilberto Gil que foi o ministro dele anos depois e que desde sempre foi da esquerda. E como sempre a Globo jovaga sujo com os seus telespetadores até ficar algo tão descarado como nos dias de hoje.
ResponderExcluirEnfim tava a um tempo querendo procurar sobre a letra da música e o contexto da época que ela foi criada e a novela. Obrigada pela bela explicação.