terça-feira, 5 de junho de 2012

Gilberto Gil e os "Condutores da Pátria" em conflito: análise da música "Amarra o teu arado a uma estrela"




Quais as intenções de transmissão de significados que podem estar por trás de uma simples abertura de novela? Talvez as mesmas da novela inteira, sendo esta um mecanismo de permanente intercâmbio de expectativas e realizações ideológicas entre mídia e público. No entanto, estamos falando de entidades heterogêneas, ainda que constantemente referidas de modo reducionista como homogêneas.




Música completa:




Amarra o Teu Arado a uma Estrela



Se os frutos produzidos pela terra 
Ainda não são 
Tão doces e polpudos quanto as peras 
Da tua ilusão 
Amarra o teu arado a uma estrela 
E os tempos darão 
Safras e safras de sonhos 
Quilos e quilos de amor 
Noutros planetas risonhos 
Outras espécies de dor



Se os campos cultivados neste mundo 
São duros demais 
E os solos assolados pela guerra 
Não produzem a paz 
Amarra o teu arado a uma estrela 
E aí tu serás 
O lavrador louco dos astros 
O camponês solto nos céus 
E quanto mais longe da terra 
Tanto mais longe de Deus



A canção foi composta e gravada por Gilberto Gil em 1989, em duas versões: uma para o álbum “O eterno deus Mu dança”, do mesmo ano, outra para a trilha sonora da novela “O salvador da pátria”, da Rede Globo, no mesmo ano. A novela falava do boia-fria Sassá Mutema, joguete de políticos poderosos que acaba por ser tornar também político, mas trabalhando mais para o povo do que para os poderosos. Sendo 1989 o ano das primeiras eleições diretas para presidente após o fim da ditadura militar, a figura de Sassá foi vinculada à do principal líder da esquerda nacional, o metalúrgico e sindicalista Luís Inácio “Lula” da Silva. A música ajudaria significativamente, portanto, num plano de propaganda política e partidária antecipada às eleições. O que tentarei neste texto, baseado em um artigo ao Prof. Dr. Waldir Beividas na área da semiótica aplicada, é criar um subsídio de informações articuladas que permitam que tal asserção anterior possa ser defendida, visto que nenhuma das partes envolvidas (o compositor, o autor e os coautores da novela, a emissora, as entidades políticas) assume isto, mantendo tal informação no campo das especulações interpretativas.

Na análise, usaremos recursos da semiótica (do grego σημειωτικός (sēmeiōtikos) literalmente "a ótica dos sinais"), descrita na Wikipédia como ”a ciência geral dos signos e da semiose que estuda todos os fenômenos culturais como se fossem sistemas sígnicos, isto é, sistemas de significação”. Na semiótica, tudo significa alguma coisa, e nenhum significado deve ser desprezado (coçar a cabeça do nada, por exemplo, pode significar não entendimento de uma palavra, frase ou cena visual, ou acometimento por caspa, seborreia ou outra doença do couro cabeludo, entre outras hipóteses. E se você despreza o fato, para a semiótica, saber se foi coçado com a mão toda ou só um dos dedos pode fazer toda a diferença na interpretação de tal gesto). Esta ciência está presente não só nos estudos linguísticos (sua origem), como também na publicidade, no jornalismo, na arquitetura, etc. Outra coisa importante a saber é que a semiótica considera todo empreendimento dinâmico terrestre como uma busca sujeito-objeto. E todo ser vivo alternará entre as posições de sujeito e objeto (ou exercerá simultaneamente as duas) até o final de sua existência (ou mesmo depois dela – um ser morto pode servir de alimento para outros seres vivos, as ideias de uma pessoa podem permanecer “vivas” após a sua morte, com outras pessoas buscando-as permanentemente).

Pois bem. Notamos que o eu-lírico enunciador tenta persuadir um homem do campo a “amarrar o teu arado a uma estrela“. Podemos afirmar que o destinatário é um homem do campo, pois nos saltam aos olhos diversos elementos da temática agrária (campos, safras, frutos, solos) que vão construindo uma paisagem semântica que neste momento chamaremos de isotopia (é como se os termos fossem desenhando um cenário contextual – neste caso, uma grande fazenda – dentro da tua imaginação enquanto ouve a música). O próprio destinatário é referido como lavrador e camponês. Esta primeira charada foi morta facilmente; veremos as outras.

Reconhecido o sujeito lavrador, logo, o objeto (ou, o programa narrativo habitual) do mesmo é a colheita. E ela é cheia de revezes: sendo os campos “duros demais”, os frutos não são “tão doces e polpudos quanto as peras da tua ilusão”. Mais: “os solos assolados pela guerra não produzem a paz”. Vemos aqui uma oposição entre o real/material (frutos da terra), e o ideal (as peras da ilusão – recordando que as peras, segundo Homero, são consideradas “presente dos deuses”, ou seja, são as frutas do paraíso – o ideal – na tradição grega). Esta ilusão é criada pelo próprio destinatário (tua ilusão); algo que parece ser real ou possível, mas não é (ilusão = o parecer e não ser do quadrado semiótico).  Esta oposição entre real e ideal permeará todo o conteúdo da música. Enfim, falha constantemente o empreendimento objetual do lavrador, e é em cima desta frustração que o eu-lírico irá argumentar.

A persuasão seguirá uma estrutura “se... então” (os programadores se encontraram aqui, né?): Numa visão geral, “se ação x gera y, ação w gerará z”, O “amarrar o arado” (elemento metonímico da força de trabalho na agricultura) proposto daria resultados com os tempos, o que caracteriza um contrato e uma espera fiduciários (ou seja, relativos à fé e à esperança) que se converteriam em safras de sonhos e quilos de amor em outros planetas, e é nessa hora que se reconhece uma estrela que não fica parada como as outras, mas que se move, podendo assim transportar o lavrador para outros planetas risonhos (portanto, alegres e receptivos), outras Terras (equivalência entre terra – elemento sólido e Terra – planeta) que não a sua, onde outras espécies de dor (e não as mesmas de sempre) surgirão como metonímia de novos desafios e resultados. Aqui também vemos desenhar-se outra isotopia: a da idealização (batismo aproximado, podendo dizer-se também sobre uma isotopia do sentimento), por compreender também elementos que remetem a capacidades cognitivas relativas a estados de reflexão ou de espírito (ilusão, sonhos, amor, loucura, paz). Desta forma, o destinador (o sujeito que manipula, que persuade outro a fazer algo por ele – neste caso, o eu lírico) tenta incutir no destinatário, agora sujeito também, um querer buscar novos objetos diferentes dos quais ele tem de lidar constantemente. E melhores, claro.

Decifrar a primeira parte da música já é 80% do caminho andado; agora é reconhecer que a segunda parte é uma amplificação da argumentação da primeira, visto que a isotopia da idealização se faz muito mais presente do que a agrária e os objetos não são mais simples alimentos, mas possíveis respostas a anseios da humanidade.

Agora não é mais a apenas uma figura (o fruto) que o destinador se refere, mas a ESPAÇOS (campos e solos), ou seja, o destinador ampliou seu espectro de atuação para começar a ampliar o poder de sua argumentação. Também já não é mais a questão de um fruto não ser suficientemente doce e polpudo – o espaço (campo) dificulta (ou, praticamente, impede: é duro “demais” pra se realizar tal ação) o desenvolvimento daquele que pode ser considerado o principal programa narrativo /actancial do lavrador: o cultivo. E o pior: esta dureza é produto de solos assolados (arrasados, destruídos) pela guerra, o que torna estes solos inférteis justamente para a produção de seu oposto: a paz! Aqui, guerra e paz se opõem como praga e fruto: uma vem sem ser convidada e devasta tudo, a outra é plantada e precisa de tempo e recursos para ser colhida.

Ninguém precisa ser muito esperto pra reconhecer que a paz é almejada pela humanidade em geral (o primeiro dia de todo ano é o dia da paz universal reconhecido mundialmente). Se antes se falava da mera oposição entre realidade e idealização, agora se fala da impossibilidade de produção de um bem necessário e almejado pela humanidade e pelo indivíduo. E, no polo do “então”, o “amarrar o arado à uma estrela” agora propõe resultados ainda mais expressivos: o desbravamento de espaços ainda mais amplos que tuas terras (astros e céus), do modo que melhor julgar (loucura e soltura). E com um detalhe importante: “Quanto mais longe da Terra, tanto mais longe de Deus”.

Esta última asserção é, certamente, a mais polêmica da música. Usualmente a visão religiosa do catolicismo rural brasileiro (na verdade, do catolicismo mundial) prega a existência de um Deus que está nos céus. Seguindo esta lógica, afastar-se da Terra (pegando “carona” numa estrela e viajando pelos céus) significaria ir cada vez mais perto de Deus. Ora, o autor propõe justamente o contrário: a noção da existência de Deus reside justamente na Terra, onde seus preceitos e mandamentos são aplicados. “Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”, escreveu certa vez Voltaire (atribuição popular sem referência bibliográfica). Isto justificaria o “mais longe da Terra, mais longe de Deus”. Os elementos anteriores reforçaram uma isotopia do cerceamento, onde há meios recheados de anti sujeitos (campos duros, solos assolados, rotinas desgastantes) que restringem o sujeito e impedem o desenvolvimento de suas competências para a realização de um programa narrativo. Logo, aqui, a religião, popularmente vista como “freio” da humanidade, também atuaria como cerceador do ponto de vista moral, e o afastamento dela como uma espécie de libertação moral.

Ora, oferecer espaços amplos, loucura, soltura e libertação moral nos faz pensar que aquele que recebe a oferta não os possui, ou melhor, possui o oposto destes (espaços restritos, retidão, cerceamento).
Enfim, podemos resumir os dois conjuntos de versos em duas fórmulas:

Estrofe 1 - “Se está frustrado com tua realidade, que não é a ideal da qual você gostaria de desfrutar, amarre o teu arado a uma estrela que, com o tempo, terá resultados que superarão tuas expectativas e ideais”.

Estrofe 2 - “Se tua realidade não lhe proporciona o necessário (e não mais apenas o ideal) para tua existência, amarra o teu arado a uma estrela e terás uma existência superior às tuas expectativas”.

Juntando-se as duas estrofes, podemos estabelecer uma tabela de oposições entre alguns elementos discursivos (tempo, espaço, aspecto, figura, ação) com os quais o lavrador-destinatário lida e quais lhe são oferecidos e por ele desejados, ou seja, uma oposição entre o real e o ideal:

Real
Ideal
Frutos comuns
Peras polpudas e doces
Pouco sonho e amor
Safras de sonho e amor
Rotina desgastante
Novos desafios
Campos duros e solos devastados
Astros e céus
Regramento do trabalho rural
Liberdade
Regramento moral-religioso
Afastamento da religião
Regramento social
Loucura

“Mas ô Manjja, você enrolou, enrolou e não falou ainda o que é amarrar o arado a uma estrela!”

Tá OK. Põe a bota que a gente vai botar o pé no pântano!

Grosso modo, uma análise semiótica geralmente é feita em três níveis: o fundamental (onde se verifica a concretude ou aparência de tal significante/objeto/ação), o narrativo (onde se verifica as relações entre sujeitos, objetos e ações) e o discursivo (onde se verificam os papéis actanciais, a dinâmica da enunciação, as isotopias e visões mais abrangentes de tempo, espaço e ação no discurso). Navegar para um quarto nível oculto, o contextual, requer muitas “concessões”, ou seja: tem que ser muito expert no assunto pra poder fazer isto. Mas eu, mesmo nem tendo mestrado, não vejo outra saída.

As informações que dei na postagem não foram à toa: elas te situam, leitor, no contexto do lançamento da música e do álbum do cantor. Pra ajudar a esclarecer mais, segue um trecho de uma entrevista com o autor da novela, Lauro César Muniz:

André Bernardo - O que motivou você a escrever "O Salvador da Pátria" em ano de eleições para presidente?
Lauro César Muniz - "O Salvador da Pátria" surgiu de um Caso Especial que escrevi 15 anos antes, "O Crime do Zé Bigorna". Costumo até dizer que Sassá Mutema é neto do Zé Bigorna! (risos) "O Crime do Zé Bigorna" contava a história de um homem muito simples, analfabeto, que era glorificado por matar o velho coronel da cidade. Ele assume como herói o crime que não praticou. Na época, o especial foi proibido pelo governo Médici e tive que ir até Brasília para negociar a liberação dele. Anos depois, retomei a história, criei o Sassá Mutema a partir da mesma história, mas fazendo o personagem evoluir, se alfabetizar e chegar a prefeito! Isso foi em 1989, e o Lula era candidato à Presidência. Logo, julgaram que eu pretendia fazer campanha do Lula através do Sassá.

AB - É verdade que a novela conseguiu desagradar tanto a esquerda quanto a direita?
LCM - É sim. A esquerda achava que o personagem fazia referências ao Lula e não gostava disso porque o Sassá Mutema era apresentado inicialmente como um paspalho, um homem ingênuo. A direita, por sua vez, achava que, se Sassá evoluísse e assumisse o poder, terminaria por fazer propaganda política para o Lula. Acabei sendo bombardeado pelos dois lados.

AB - Na época, um executivo da Globo teria dito que o autor de "O Salvador da Pátria" elegeria o próximo presidente da República...
LCM - Pois é. Ouvi isso de diversas pessoas. Mas é claro que não passava de um exagero, um absurdo. Mas não tive alternativa. Ou recuava, ou abandonava a novela. E eu não cogitava a hipótese de abandonar a novela. Estava completamente apaixonado por aquele personagem, o Sassá Mutema. Olha, duas décadas depois, ainda não sei o que aconteceu. Esse episódio ainda é obscuro para mim e acho que vou morrer sem saber o que houve. Talvez por isso "O Salvador da Pátria" não seja uma das minhas novelas favoritas. As minhas prediletas são "Escalada", "O Casarão" e "Espelho Mágico". São as três que eu mais gostei de fazer. (entrevista na íntegra aqui)
 
Por outro lado, Gilberto Gil, na época, havia sido eleito vereador em Salvador pelo PMDB, filiando-se ao PV em 1990 e conciliando propostas políticas e de ONGs com a carreira de artista até tornar-se Ministro da Cultura em 2003, no primeiro mandato do mesmo Lula que tentava se eleger presidente desde 1989. De fato, Gil apoiou abertamente a candidatura de Lula em 2002. Neste ano, estive em um show gratuito do cantor no Parque do Ibirapuera, na capital de São Paulo, como parte da série “Pão Music” - promovida pelo grupo Pão de Açúcar, em 11/10/2002. Gil apresentou-se vestido de branco e vermelho e, em determinado momento, fez menção às cores de sua roupa e puxou a música “Prelúdio”, de Raul Seixas – com os famosos versos “sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade” – a eleição de seu apoiado no segundo turno ocorreria duas semanas depois. Tentei achar imagens do show no YouTube, mas creio que naquela época ainda não havia tantas câmeras digitais quanto há hoje.

NOTA POSTERIOR - O mesmo Gilberto Gil retornou ao Parque do Ibirapuera em 2014 em um show supostamente promovido pela Samsung conjuntamente com o Banco Itaú, desta vez, vestido de azul e com uma guitarra alaranjada, cores desta segunda instituição que apoiou abertamente a candidatura de Marina Silva e a tentativa de criação do "partido" Rede Sustentabilidade, cujo nome acabou transferido para a operadora de máquinas de leitura de cartões, em uma aula magistral sobre como fazer showmícios modernos de maneira o mais discreta possível (posto que são oficialmente proibidos) utilizando-se de conhecimentos em semiótica.

Lula é presidente até hoje (atualmente, presidência de honra) do Partido dos Trabalhadores, cujas cores são o vermelho e o branco e cujo símbolo é uma... estrela! OPA! PARA TUDO!

Então Gilberto Gil sempre teve simpatia com a causa petista desde aquela época. Agora faz todo sentido amarrar o arado, figura da força de trabalho na isotopia agrária, a uma estrela (e não “a” estrela, ou seja, há várias) – tendo um partido vários diretórios estaduais e municipais, fica fácil atribuir o histórico bordão “filie-se ao PT” à causa, e aí se manifesta a mais igualmente subliminar e fundamental das isotopias da canção, a do trabalho.

Portanto, o apelo agora passa a ser entendido como dirigido não só ao lavrador, mas aos trabalhadores em geral, e o autor-destinador-manipulador agora passa à condição de sujeito que tem por objeto a agremiação do máximo possível de pessoas que compartilhem de sua causa partidária. Cada indivíduo objetivado tem como objeto, por sua vez, a melhoria de suas condições de trabalho e de vida propostas como resultado do contrato fiduciário estabelecido com o destinador superior. Um trecho da carta de princípios do partido soa bem esclarecedor: “O PT define-se também como partido das massas populares, unindo-se ao lado dos operários, vanguarda de toda a população explorada, todos os outros trabalhadores – bancários, professores, funcionários públicos, comerciários, boias-frias, profissionais liberais, estudantes etc. – que lutam por melhores condições de vida, por efetivas liberdades democráticas e por participação política”.

Mas isto ainda não é o bastante para definir se havia intenções pró Lula na canção e na novela. O xeque-mate está em outra entrevista do Lauro, desta vez para a Folha de S. Paulo, já em 2006:


Folha - O sr. disse que o governo pressionou a Globo para que Sassá Mutema, de "Salvador da Pátria" (89), fosse modificado, já que estaria promovendo a imagem de Lula. E, cá entre nós, havia mesmo uma inspiração no candidato, não?

Muniz - Tinha um pouco sim. Eu me sentia sob pressão. Até algumas pessoas do PT, que não tiveram paciência de esperar a virada de Sassá, reclamaram que ele era manipulado e achavam que eu era a favor do Collor. Mas Sassá ia se emancipar no processo. Eu não estava fazendo propaganda do Lula, mas tentando analisar a tomada de consciência de um homem do povo. Nem votei nele no primeiro turno, mas no Covas. Votei no Lula só no segundo.



Folha - O sr. não era ligado ao PT?



Muniz - Nunca fui. Sou de esquerda [risos]. Meu último partido foi o Comunista, que deixei em 68, com o AI-5 [ato institucional nº 5, que endureceu a ditadura militar]. E aí passamos a ver a novela como uma arma para subliminarmente informar a população sobre o que acontecia no país.


Folha - Como seria o Sassá hoje?



Muniz - Não sei se daria para fazer o Sassá hoje. Acho que ele teria um final trágico, e não um apoteótico como o da trama de 89. E a novela se chamaria "O Traidor da Pátria" [risos]. Estou preocupado, foi uma grande decepção, apesar de também não ter votado no Lula em 2002. Votei no Serra. E eu não votei errado, não [risos]. (íntegra aqui)



E, para lacrar, o final de uma entrevista dada à Folha Universal (lembrando que Lauro estava trabalhando como autor de novelas à Rede Record, de propriedade do Bispo Edir Macedo, também dono da IURD, em 2006):

10 – Por que o senhor disse que, se fosse refeita hoje, a novela “O Salvador da Pátria” deveria ser chamada “O Traidor da Pátria”?
Em 1989, (ano de eleição para presidente em que disputaram o segundo turno o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor), o personagem Sassá Mutema, o Salvador da Pátria, foi associado ao Lula. Mas não fiz com a intenção de criticá-lo. Agora, a piada de dizer “Traidor da Pátria” é em função da grande decepção com esse governo e com o PT (Partido dos Trabalhadores). Já tivemos alguns esclarecimentos, mas a situação ainda está por ser plenamente explicada. (outra íntegra aqui, seu noveleiro enrustido!)

Assim, podemos afirmar com segurança que a música foi escolhida cuidadosamente para a abertura da novela que tinha, sim, uma propaganda a favor do Lula e do PT. Exibida diariamente. Se formos mais longe, os trechos das entrevistas revelam que o autor tinha um contrato fiduciário que terminou frustrado com tal eleição que se pretendia que ocorresse em 89 e só efetivou-se em 2002 (daí a expressão “O traidor da pátria”).

“Tá, e no que isso muda minha vida?”

Não é porque a novela tenha tido influência da formação socialista/comunista do autor que toda a emissora tenha concordado e apoiado. A novela foi encerrada antes da hora, com diversos “buracos” com relação à pauta original, segundo o autor. Todo mundo que assistiu o documentário “Beyond Citizen Kane” (Muito além do Cidadão Kane, em português) está consciente do papel da Globo como a verdadeira TV estatal (e não a Cultura e a EBC, feitas “pra UNESCO ver”), bem como da manipulação do debate entre Lula e Collor para que o segundo candidato fosse mais bem-visto pelo eleitorado. Caso ainda não tenha assistido o documentário e tenha saco e 2 horas de tempo livre pra tal, clique aqui.

Lembremos também que foi a própria Record que disponibilizou tal documentário na internet. E que contratou Lauro César pra fazer novelas superiores às da Globo. O recado dado à União é basicamente este: “Queremos trabalhar a teu favor. Mas se não toparem, trabalharemos contra”.

Manipulação midiática dá muito dinheiro. É uma ferramenta que todo sistema governamental precisa ter para fins de coesão ideológica e coerção moral. Pra quem acha que 89 tá “lá atrás” (pressuponho que alguns leitores nem tenham nascido ainda, quanto mais assistido a novela), lembrem que há apenas 4 anos atrás a novela “Duas caras” fez uma paródia megatosca da ocupação da reitoria da USP na greve multisetorial de 2007, ridicularizando o ocorrido. E praticamente nenhum canal fala da atual temporada de greve por luta salarial em 48 universidades federais do país.

Mas o povo também pode escapar massivamente destas rédeas, produzindo resultados que vão da revolução à tragicomédia. O eleitorado que pôs Lula no poder depois de 18 anos de direita é o mesmo que elegeu o palhaço Tiririca em tom de protesto e descrença total no sistema político nacional em seu status atual. Afinal, de que adianta um político acusado de corrupção ser preso numa novela enquanto os reais podem fazer um processo cível ou criminal tramitar por até 27 anos na justiça até a execução da sentença e aguardarem este período todo em liberdade?

Não estou fazendo aqui nenhuma apologia ou crítica partidária. Respeito as posições partidárias de meu amigos, parceiros e colegas de trabalho. Também tenho amigos que tanto adoram assistir novelas para utilizarem como recurso educacional ou mesmo mera diversão quanto não querem nem chegar perto de qualquer TV ligada. Mas uma postagem desta é bem oportuna para um ano de olimpíadas e eleições. Atente a tudo que tentarão lhe dizer nas músicas em geral, mesmo que leve algum tempo pra você captar a real mensagem. E não pense que é só nos jingles de campanha que política e música se encontram...

Um comentário:

  1. Ah muito obrigada mesmo pelo desvendar dessa música. Eu e minha família nos mudamos pra outra cidade e estamos morando na casa da minha sogra até a nossa ficar pronta e ela adora ver novelas reprisadas no Viva e justamente está reprisando O Salvador da Pátria e desde quando eu ouvi a primeira vez a abertura da novela quando ela vê fiquei encucada com a letra, ouvi a segunda e a terceira e falei comigo mesma: caramba desde essa época já existia campanha incutida nas novelas pra o PT e o Lula, isso na minha mente lembrando que quem cantava a música era o Gilberto Gil que foi o ministro dele anos depois e que desde sempre foi da esquerda. E como sempre a Globo jovaga sujo com os seus telespetadores até ficar algo tão descarado como nos dias de hoje.

    Enfim tava a um tempo querendo procurar sobre a letra da música e o contexto da época que ela foi criada e a novela. Obrigada pela bela explicação.

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