Todo sistema
socioeconômico terá os seus inadaptados e renegados. Mas o sistema capitalista
tem sido tema de diversas obras relatando transições de estados de contenção
passiva para distensão ativa. A análise desta música do Matanza, que só
aparentemente soa um bate-cabeça cru como reza a tradição da banda, cai bem num
momento em que são noticiadas ações incompreensíveis como as de Anders Breivik, Go Su-Nam e James Holmes.
Conforme Disseram As Vozes
Naquele dia comecei a ouvir as
vozes
Que me falavam coisas sobre o meu
destino
Do dia em que eu me tornaria de
um sujeito ordinário
A um sistemático assassino
Eu esperei, conforme disseram as
vozes
Pelo sinal do final do nosso
tempo
E então passei pela mensagem
revelada
Logo na entrada de um grande
estacionamento
Não entendia direito todas as
vozes
Mal compreendia qual era o
objetivo
No entanto, tão rápido que se
fala
Enchi o porta-malas do carro com
os explosivos
Estacionei, conforme disseram as
vozes
Na lateral, junto às portas do
cinema
Senti pena pelos carros
importados
Mas as vozes garantiram que
valeria a pena
E de repente cessaram todas as
vozes
Como se nunca tivessem existido
Alívio que seria memorável
Se eu não fosse o responsável por
um shopping destruído
E desde então nunca mais ouvi as
vozes,
Mas eu duvido que isso mude a
minha sorte
O meu futuro é um pouco incerto
Daqui eu sigo direto para o
corredor da morte
Para entender
esta música, vai ser necessário trabalhar o nível fundamental da semiótica no
que concerne aos conceitos de contenção, retenção e distensão. Ou, melhor
descrevendo, uma análise do aspecto tensivo.
Mas não é necessário ser um gênio da linguística pra entender algo pelo qual
todos nós passamos no dia-a-dia. Apenas a metalinguagem é outra.
Minha avó
falava: “Quando terminar de encher o saco você vai ver onde eu vou despejar o
lixo”. Foi através dela que entendi o real significado da expressão “encher o
saco”, um saco metafórico de lixo que nada tinha a ver com a bolsa escrotal (o
que explica o fato de as mulheres também ficarem “de saco cheio”). Receber
constantes ofensas, injúrias, desagrados e outros inconvenientes sem reagir,
apenas acumulando na mente, é o estado de contenção
passiva tão enaltecido na nossa sociedade cristã moderna (sabe aquelas coisas
de dar a outra face pra bater, continuar dando esmolas mesmo que vire pinga na maioria
das vezes, perdoar mesmo quem já conta com o perdão dos outros? É, são coisas
deste tipo). É o tipo de não-reação que perpetua e legitima as provocações
iniciais.
Às vezes, nos
ocorrem muitas agressões físicas e psicológicas (mesmo as casuais, os famosos
“azares”) simultâneas ou sequenciais em curto tempo. O esforço para manter a
compostura e o respeito ao nosso contrato social resultam num estado de retenção, ou seja, num acúmulo de
negatividades. Alguns não conseguem segurar por muito tempo; são os sujeitos de
“pavio curto”. Outros têm um estoque cognitivo bem maior e são ditos “cuca
fresca”. Mas ninguém passa uma vida inteira aguentando desaforo.
Enfim, uma hora
acaba sendo necessário descarregar. Eis a distensão.
Ela vem voluntária (quando eu planejo algo pra relaxar ou descarregar a tensão)
ou involuntária (quando ocorrem, por exemplo, descontroles, explosões e
sequestros emocionais). Só depois disso a pessoa consegue entrar num estado de relaxamento. O quadrado semiótico do
aspecto tensivo, com base nas afirmações anteriores, pode ser descrito no
esquema de forma e movimento abaixo:
Um dos grandes
problemas de nosso sistema capitalista é que ele simplesmente não te dá o
direito de relaxar gratuitamente. O indivíduo ordinário trabalha em 5 ou 6 dos
7 dias da semana (nem estou considerando os pais e mães de família - uma profissão 24h e sem férias!), desenvolvendo sucessivos estados de contenção e retenção em
busca da geração de valores até que surge a oportunidade de distender e
relaxar. Mas estes dois componentes também são transformados em mercadorias,
sendo a indução a estratégia majoritária de venda. Em outras palavras: você se
mata de trabalhar no mês inteiro para, no final ou mesmo no decorrer do mês,
com o que sobra da manutenção daquilo que o indivíduo enquadra nas necessidades
primárias, gastar com supérfluos e luxos que lhe são sugeridos: viagens, clubes
esportivos, shows, baladas, serviços estéticos, itens da moda, etc. Todos os
mantenedores de projetos de poder sociais, econômicos, políticos e mesmo
psicológicos sabem da grande massa de pessoas que desconta as frustrações da
vida no consumo. Lembremos-nos de como a maioria dos adolescentes e adultos de
hoje costuma passear nos shopping centers
mesmo que não queiram comprar nada ou não tenham como fazê-lo no momento (e boa
parte destes acaba gastando o que não deve no meio desta prática), sem contar
os que levam as crianças para os shoppings, estimulando o ciclo desde o início
da formação psicológica do ser. E mais: o consumo como recurso de distensão é
estimulado de maneira discreta, mas ativa!
É só lembrar,
por exemplo, das vezes em que são exibidas propagandas de carrões blindados,
itens e serviços de segurança privada e apartamentos ou casas em condomínios
fechados logo após o jornal noticiar assaltos, sequestros, crises econômicas,
escândalos políticos, indicadores de desemprego e desempenhos das principais
bolsas de valores. A tensão é gerada para que, logo após, sejam oferecidas
mercadorias com a pretensão de facilitar a distensão. Em suma, o sistema
capitalista envolve valores em todos os movimentos do quadrado semiótico
tensivo do indivíduo, inclusive na distensão e no relaxamento, e isto faz com
que o Homo sociabilis nunca relaxe
totalmente, já que nunca conseguirá sair da condição de fomentador do sistema
econômico em qualquer que seja o movimento tensivo. É algo do qual nem o
rastafári que vende penduricalhos na beira da praia deserta do litoral capixaba
consegue fugir.
Mas e quando o
indivíduo não ganha nem pra manter o “básico”? E quando, mesmo mantendo o seu básico, a não aquisição dos luxos e
supérfluos dos “adequadinhos” lhe coloca num estado de exclusão implícita? E
quando ele praticamente não tem acesso a (ou conhecimento de) outras formas de
distensão e relaxamento que não sejam mercadoria? Neste caso, as áreas de
retenção e contenção ficam congestionadas, estranguladas, até que a distensão
venha de maneira espontânea e desordenada. Não raro vemos casos de pessoas que
entraram no crime depois de tanto passar fome e sofrer discriminação, além das
tragédias do tipo “Brasil Urgente” ou “Programa do Ratinho”: pais e mães de
família que, no desespero, se matam, matam seus próprios familiares, matam outros
inocentes, etc., todas estas coisas narradas nas músicas do Facção Central,
para fins exemplares. Dentre os surtos psicológicos noticiados nestes casos, um
dos mais comuns é a esquizofrenia.
Toda esta volta
foi dada para justificar por que o personagem da música causou a tragédia
“conforme disseram as vozes”. Isto explica porque o esquizofrênico surtado
escolheu um shopping como alvo. E porque só depois da explosão o surto
esquizofrênico findou-se. Mas podemos nos perguntar: ”Se houve ‘planejamento’
da ação (compra de explosivos, escolha do alvo, etc.), como fica a questão da
famosa ‘alegação de insanidade’”? Neste caso, o crime descrito como insano toma
ares de premeditado, o que resulta na condenação à morte. Moral da estória: não
que nesta análise deva ser outorgado um “endeusamento” do sistema, mas não é
interessante a esta entidade coletiva que haja indivíduos que atuem contra a
mesma, ou mesmo que adquiram consciência de seus esquemas de manipulação e
sanção e não colaborem com estes, seja por incompetência ou por mera vontade
alternativa.
O problema
maior é que tanto o personagem fictício da música quanto os seres reais das
tragédias do primeiro parágrafo concretizaram algo que a grande maioria das
pessoas faz em pensamento. Quem nunca teve vontade de esganar aquela vadia ou
aquele corno que te ferrou no trabalho? Ou de dinamitar o prédio da empresa em
que trabalha numa segunda-feira de mau humor? E o estudante que sofre bullying,
nunca pensou em reproduzir um novo “Tiros em Columbine” depois de dias a fio
jogando Call of Duty? Não seriam estes indivíduos mais corajosos e heróicos do
que os que ficam só “viajando na maionese”?
Para nossa
alegria, a resposta é “não”. “Fantasiar” a tragédia só em pensamento acaba
virando uma forma de distensão e relaxamento gratuita. Em certos casos, até
mesmo geradora de valor, pois é desta capacidade imaginativa e ficcionalizadora
que dependem os romancistas, escritores, cineastas, poetas, músicos e outras
profissões correlatas. Johann Wolfgang Von Goethe escreveu “Os sofrimentos do
jovem Werther” como forma de exorcizar uma paixão não concretizada em vez de se
suicidar, matar seu amor não correspondido ou matar seu rival. Até hoje é a
obra literária mais famosa do cânone alemão. Renato Russo incutiu nas
sucessivas gerações de jovens brasileiros até a atual a estratégia de compor
canções para exprimir seus sentimentos e ideias. É nesta linha que se enquadra
não só esta, mas a maioria das músicas do Matanza: por mais que pensem que é
“som de louco”, não passa de uma forma de exorcismo, de distensão via
entretenimento musical. Não se trata de cultuar as negatividades, mas de
admiti-las e retrabalha-las mesmo que haja apenas válvulas de escape como
resultado.
E, a longo
prazo, algumas destas obras de ficção promoverão transformações graduais no
ideário coletivo social, de tal forma que as negatividades contidas ou retidas
sejam retrabalhadas e eliminadas. Claro, também haverá sempre obras de ficção
alienantes, com fins pedagógicos mesquinhos e estratégias baratas, meras
distrações consumíveis. Mas separar o joio do trigo fica a critério de quem
procura ficção e entretenimento como forma de distração. Fica a dica,
inclusive, para se rever a óptica do consumo sobre estes objetos, já que
estamos em tempos de Creative Commons, compartilhamento P2P, The Pirate Bay,
Wikipedia e debates acalorados sobre produção cultural e propriedade
intelectual nos tempos da Internet.
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