segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Capitalismo e esquizofrenia: análise da música “Conforme disseram as vozes”, do Matanza.


Todo sistema socioeconômico terá os seus inadaptados e renegados. Mas o sistema capitalista tem sido tema de diversas obras relatando transições de estados de contenção passiva para distensão ativa. A análise desta música do Matanza, que só aparentemente soa um bate-cabeça cru como reza a tradição da banda, cai bem num momento em que são noticiadas ações incompreensíveis como as de Anders Breivik, Go Su-Nam e James Holmes.





Conforme Disseram As Vozes



Naquele dia comecei a ouvir as vozes
Que me falavam coisas sobre o meu destino
Do dia em que eu me tornaria de um sujeito ordinário
A um sistemático assassino

Eu esperei, conforme disseram as vozes
Pelo sinal do final do nosso tempo
E então passei pela mensagem revelada
Logo na entrada de um grande estacionamento

Não entendia direito todas as vozes
Mal compreendia qual era o objetivo
No entanto, tão rápido que se fala
Enchi o porta-malas do carro com os explosivos

Estacionei, conforme disseram as vozes
Na lateral, junto às portas do cinema
Senti pena pelos carros importados
Mas as vozes garantiram que valeria a pena

E de repente cessaram todas as vozes
Como se nunca tivessem existido
Alívio que seria memorável
Se eu não fosse o responsável por um shopping destruído

E desde então nunca mais ouvi as vozes,
Mas eu duvido que isso mude a minha sorte
O meu futuro é um pouco incerto
Daqui eu sigo direto para o corredor da morte


Para entender esta música, vai ser necessário trabalhar o nível fundamental da semiótica no que concerne aos conceitos de contenção, retenção e distensão. Ou, melhor descrevendo, uma análise do aspecto tensivo. Mas não é necessário ser um gênio da linguística pra entender algo pelo qual todos nós passamos no dia-a-dia. Apenas a metalinguagem é outra.

Minha avó falava: “Quando terminar de encher o saco você vai ver onde eu vou despejar o lixo”. Foi através dela que entendi o real significado da expressão “encher o saco”, um saco metafórico de lixo que nada tinha a ver com a bolsa escrotal (o que explica o fato de as mulheres também ficarem “de saco cheio”). Receber constantes ofensas, injúrias, desagrados e outros inconvenientes sem reagir, apenas acumulando na mente, é o estado de contenção passiva tão enaltecido na nossa sociedade cristã moderna (sabe aquelas coisas de dar a outra face pra bater, continuar dando esmolas mesmo que vire pinga na maioria das vezes, perdoar mesmo quem já conta com o perdão dos outros? É, são coisas deste tipo). É o tipo de não-reação que perpetua e legitima as provocações iniciais.

Às vezes, nos ocorrem muitas agressões físicas e psicológicas (mesmo as casuais, os famosos “azares”) simultâneas ou sequenciais em curto tempo. O esforço para manter a compostura e o respeito ao nosso contrato social resultam num estado de retenção, ou seja, num acúmulo de negatividades. Alguns não conseguem segurar por muito tempo; são os sujeitos de “pavio curto”. Outros têm um estoque cognitivo bem maior e são ditos “cuca fresca”. Mas ninguém passa uma vida inteira aguentando desaforo.

Enfim, uma hora acaba sendo necessário descarregar. Eis a distensão. Ela vem voluntária (quando eu planejo algo pra relaxar ou descarregar a tensão) ou involuntária (quando ocorrem, por exemplo, descontroles, explosões e sequestros emocionais). Só depois disso a pessoa consegue entrar num estado de relaxamento. O quadrado semiótico do aspecto tensivo, com base nas afirmações anteriores, pode ser descrito no esquema de forma e movimento abaixo:


Um dos grandes problemas de nosso sistema capitalista é que ele simplesmente não te dá o direito de relaxar gratuitamente. O indivíduo ordinário trabalha em 5 ou 6 dos 7 dias da semana (nem estou considerando os pais e mães de família - uma profissão 24h e sem férias!), desenvolvendo sucessivos estados de contenção e retenção em busca da geração de valores até que surge a oportunidade de distender e relaxar. Mas estes dois componentes também são transformados em mercadorias, sendo a indução a estratégia majoritária de venda. Em outras palavras: você se mata de trabalhar no mês inteiro para, no final ou mesmo no decorrer do mês, com o que sobra da manutenção daquilo que o indivíduo enquadra nas necessidades primárias, gastar com supérfluos e luxos que lhe são sugeridos: viagens, clubes esportivos, shows, baladas, serviços estéticos, itens da moda, etc. Todos os mantenedores de projetos de poder sociais, econômicos, políticos e mesmo psicológicos sabem da grande massa de pessoas que desconta as frustrações da vida no consumo. Lembremos-nos de como a maioria dos adolescentes e adultos de hoje costuma passear nos shopping centers mesmo que não queiram comprar nada ou não tenham como fazê-lo no momento (e boa parte destes acaba gastando o que não deve no meio desta prática), sem contar os que levam as crianças para os shoppings, estimulando o ciclo desde o início da formação psicológica do ser. E mais: o consumo como recurso de distensão é estimulado de maneira discreta, mas ativa!

É só lembrar, por exemplo, das vezes em que são exibidas propagandas de carrões blindados, itens e serviços de segurança privada e apartamentos ou casas em condomínios fechados logo após o jornal noticiar assaltos, sequestros, crises econômicas, escândalos políticos, indicadores de desemprego e desempenhos das principais bolsas de valores. A tensão é gerada para que, logo após, sejam oferecidas mercadorias com a pretensão de facilitar a distensão. Em suma, o sistema capitalista envolve valores em todos os movimentos do quadrado semiótico tensivo do indivíduo, inclusive na distensão e no relaxamento, e isto faz com que o Homo sociabilis nunca relaxe totalmente, já que nunca conseguirá sair da condição de fomentador do sistema econômico em qualquer que seja o movimento tensivo. É algo do qual nem o rastafári que vende penduricalhos na beira da praia deserta do litoral capixaba consegue fugir.

Mas e quando o indivíduo não ganha nem pra manter o “básico”? E quando, mesmo mantendo o seu básico, a não aquisição dos luxos e supérfluos dos “adequadinhos” lhe coloca num estado de exclusão implícita? E quando ele praticamente não tem acesso a (ou conhecimento de) outras formas de distensão e relaxamento que não sejam mercadoria? Neste caso, as áreas de retenção e contenção ficam congestionadas, estranguladas, até que a distensão venha de maneira espontânea e desordenada. Não raro vemos casos de pessoas que entraram no crime depois de tanto passar fome e sofrer discriminação, além das tragédias do tipo “Brasil Urgente” ou “Programa do Ratinho”: pais e mães de família que, no desespero, se matam, matam seus próprios familiares, matam outros inocentes, etc., todas estas coisas narradas nas músicas do Facção Central, para fins exemplares. Dentre os surtos psicológicos noticiados nestes casos, um dos mais comuns é a esquizofrenia.

Toda esta volta foi dada para justificar por que o personagem da música causou a tragédia “conforme disseram as vozes”. Isto explica porque o esquizofrênico surtado escolheu um shopping como alvo. E porque só depois da explosão o surto esquizofrênico findou-se. Mas podemos nos perguntar: ”Se houve ‘planejamento’ da ação (compra de explosivos, escolha do alvo, etc.), como fica a questão da famosa ‘alegação de insanidade’”? Neste caso, o crime descrito como insano toma ares de premeditado, o que resulta na condenação à morte. Moral da estória: não que nesta análise deva ser outorgado um “endeusamento” do sistema, mas não é interessante a esta entidade coletiva que haja indivíduos que atuem contra a mesma, ou mesmo que adquiram consciência de seus esquemas de manipulação e sanção e não colaborem com estes, seja por incompetência ou por mera vontade alternativa.

O problema maior é que tanto o personagem fictício da música quanto os seres reais das tragédias do primeiro parágrafo concretizaram algo que a grande maioria das pessoas faz em pensamento. Quem nunca teve vontade de esganar aquela vadia ou aquele corno que te ferrou no trabalho? Ou de dinamitar o prédio da empresa em que trabalha numa segunda-feira de mau humor? E o estudante que sofre bullying, nunca pensou em reproduzir um novo “Tiros em Columbine” depois de dias a fio jogando Call of Duty? Não seriam estes indivíduos mais corajosos e heróicos do que os que ficam só “viajando na maionese”?

Para nossa alegria, a resposta é “não”. “Fantasiar” a tragédia só em pensamento acaba virando uma forma de distensão e relaxamento gratuita. Em certos casos, até mesmo geradora de valor, pois é desta capacidade imaginativa e ficcionalizadora que dependem os romancistas, escritores, cineastas, poetas, músicos e outras profissões correlatas. Johann Wolfgang Von Goethe escreveu “Os sofrimentos do jovem Werther” como forma de exorcizar uma paixão não concretizada em vez de se suicidar, matar seu amor não correspondido ou matar seu rival. Até hoje é a obra literária mais famosa do cânone alemão. Renato Russo incutiu nas sucessivas gerações de jovens brasileiros até a atual a estratégia de compor canções para exprimir seus sentimentos e ideias. É nesta linha que se enquadra não só esta, mas a maioria das músicas do Matanza: por mais que pensem que é “som de louco”, não passa de uma forma de exorcismo, de distensão via entretenimento musical. Não se trata de cultuar as negatividades, mas de admiti-las e retrabalha-las mesmo que haja apenas válvulas de escape como resultado.

E, a longo prazo, algumas destas obras de ficção promoverão transformações graduais no ideário coletivo social, de tal forma que as negatividades contidas ou retidas sejam retrabalhadas e eliminadas. Claro, também haverá sempre obras de ficção alienantes, com fins pedagógicos mesquinhos e estratégias baratas, meras distrações consumíveis. Mas separar o joio do trigo fica a critério de quem procura ficção e entretenimento como forma de distração. Fica a dica, inclusive, para se rever a óptica do consumo sobre estes objetos, já que estamos em tempos de Creative Commons, compartilhamento P2P, The Pirate Bay, Wikipedia e debates acalorados sobre produção cultural e propriedade intelectual nos tempos da Internet.

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