segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Crônica de uma auto-hipnose: nostalgia e reacionarismo no asilo web-retrô do Youtube

Até onde querer voltar ao passado ou mantê-lo vivo se torna um problema em vez de um hábito saudável? O assunto e o interesse são bem pessoais, mas valem o compartilhamento, visto que me descobri já há algum tempo como membro de uma bem povoada geração kidult trash 80’s criada no meio de Thundercats, Xuxas, Super Mários, Lombardis, Mussuns e Bancos Imobiliários regidos sob a batuta da grande babá eletrônica.


São poucas as pessoas que têm lembranças claras de sua infância. Na maioria das vezes, são imagens difusas, desconexas, com variações extremas de significância externa. Ocorrendo fatos ruins na infância, então, esta lembrança pode ser facilmente apagada ou jogada no “arquivo morto” da memória. Em meu caso particular, estão incluídos maus tratos em creches, constantes brigas dos pais, históricos de doenças mentais na família e uma broncopneumonia que quase me matou aos 3 anos de idade. E é o que minha família me conta: eu mesmo lembrava-me de muito pouco, quase nada. Meu interesse sobre meu passado residia numa teoria de que muitas ações estranhas ou mesmo absurdas da minha parte partiam de (boas ou más) aprendizagens da infância no meu inconsciente.

E do que eu conseguia me recordar? Majoritariamente, de um medo absurdo e irracional de tevês CRT desligadas e de vinhetas antigas.





 Como aconteceu com boa parte das crianças dos anos 80 e 90, era de praxe ser colocado em frente à TV nos momentos em que os pais se divertiam ou tinham de resolver questões particulares. Por vezes, quando minha mãe saía, assistia TV sozinho até acabar a programação. Isto mesmo: naqueles tempos praticamente TODOS os canais encerravam suas programações para manutenção dos equipamentos – para quem quer saber como é, a TV Cultura faz isso até hoje, com o hino nacional e imagens do país (Clique aqui se não quiser ficar acordado até de madrugada). Só quem ficou assistindo filmes de terror e suspense durante a madrugada e dormiu durante os mesmos sabe quão pavoroso é acordar com a vinheta de encerramento das transmissões. Mas o mais duro dos CRT’s era a radiação dos tubos logo após o desligamento. Se você tivesse acabado de assistir um jornal por meia hora antes de desligar, por exemplo, o que ficava na tela era a “sombra” radioativa do apresentador. Para muitas crianças como eu, era, de fato, um “fantasma”... BUUUUuuuuuu...

E as vinhetas? Claro! Praticamente todas elas eram feitas em duas máquinas de computação gráfica gigantescas (aproximadamente 10 x 2m) e pré-históricas (inventadas em 1968): o Scanimate, a mais historicamente famosa, e a Slit-scan, sua irmã menos conhecida, que recentemente virou app para IPad. As emissoras de TV geralmente encomendavam a uma empresa americana de CG, a Dolphin Productions, os pedidos de vinhetas e animações. A maioria era num fundo preto, com samplers disco-trash medonhos. Fiquei muito contente ao saber que não era o único ao sentir um certo frio na espinha ao ver algumas delas: a lista de comentários no YT é longa!


Enfim, virei um viciado em (e colecionador de) vinhetas antigas de TV postadas por diversos profissionais e ex-profissionais de CG televisiva no Youtube para a alegria de muitos. E nisto tive meus benefícios: a almejada recuperação de diversas lembranças da infância a partir dos 4 anos (1987), o que me ajudou bastante no meu caminho de autoconhecimento e de compreensão da minha psique. E deixei de pensar que esta “pira” era exclusivamente minha. Mas uma coisa me deixou chateado: ao mesmo tempo em que os usuários da “TV virtual” construíram coletiva e descompromissadamente uma história da VHF/UHF brasileira (aliás, mundial), também foi notada uma alta emissão de frequências saudosistas e reacionárias na linha do “não se fazem mais destes como antigamente” ou do “hoje em dia é tudo uma porcaria”. E não é só referente a vinhetas e programas, mas a outras expressões artísticas, em especial a música.




(Observo agora que tanto saudosismo quanto nostalgia soam termos “incompletos” para a descrição do tema trabalhado. O primeiro tem a ver com a corrente literária portuguesa do início do século XX; o segundo é um tipo de sentimento que todos nós podemos ter de maneira saudável. Instauro aqui um termo híbrido adequado – “web-retrô”, paralelo a outro que pode ser usado em tom pejorativo: “cybertiozão”. Fiquem avonts  para espalhar as gírias e não esqueçam de me creditar, OK?)

No decorrer de nosso crescimento, passamos por boas e más experiências. Dependendo da intensidade e do impacto das mesmas, podemos armazená-las permanentemente ou guardá-las no inconsciente, isolando alguns elementos destas para resgatá-las quando julgarmos necessário ou conveniente, como se fossem tags de busca. Uma paisagem, um objeto de época, um sabor ou aroma, um elemento cultural, entre outros, podem servir como catalizadores de determinadas recordações. No caso das más lembranças, estas são constantemente evitadas, mas os catalizadores externos reevocam-nas “acessando” as tags mentais, sem que haja intenção nossa. Por exemplo: passar sem querer em frente à escola da qual você foi expulso por indisciplina ou na qual sofreu bullying certamente lhe trará más lembranças. Já com as boas, é diferente: um objeto material ou uma pequena recordação psicológica é por nós arquivada como tag para que acessemos intencionalmente estas lembranças, como um diário, um álbum de figurinhas, uma peça de roupa de alguém, uma música, uma série ou desenho animado.

No caso do fenômeno web-retrô, predominam dois elementos:
  •   A nostalgia, descrita como “uma sensação de saudade de um tempo vivido, frequentemente idealizado e irreal”. A nostalgia também é qualificada como um sentimento que surge a partir da sensação de não poder mais reviver certos momentos da vida;
  •   O escapismo, definido como “o alívio ou a distração mental de obrigações ou realidades desagradáveis recorrendo a devaneios e imaginações”. Manifesta-se, por exemplo, na busca da natureza, na fuga para o passado próximo (a infância) ou distante (a Idade Média), o sonho, a fantasia ou até mesmo a morte. Podemos definir escapismo também como a “desconsideração da realidade”. Um trecho da música Ska, dos Paralamas do Sucesso, soa bem esclarecedor: “relembrando da janela tudo o que viveu / fingindo não ver os erros que cometeu”.


Os conflitos ideológicos entre gerações acabam fomentando, em boa parte dos mais velhos (principalmente se sociopatas enrustidos), sentimentos de inadaptação, deslocamento psicológico da posição espaço-temporal, constante reafirmação dos elementos culturais internos (posturas, costumes) e externos (expressões artísticas ou técnicas) pelo indivíduo adquiridos e conservados, entre outras táticas de defesa que o reacionário emprega quase como uma espécie de instinto animal perante o novo sempre que este ameaça o seu nomos, ou seja, seu conjunto de crenças e valores que constitui sua visão de mundo. É isto que faz com que qualquer filme, grupo musical, novela, etc., que tenha sido um sucesso “das antigas” seja sempre melhor do que os equivalentes da atualidade, na visão do cybertiozão. É a plena negação do eixo diacrônico (ou, simplificando, da própria evolução) do elemento social ou cultural escolhido como alvo. Alguns podem dizer que “é a cara” dos trintões/quarentões/cinquentões “digitalmente incluídos” da atualidade que andam infestando as redes sociais. Logo, surge a questão: “O que há de errado nisto”?

Toma-se por base metonímica a própria questão das atrações televisivas (especialmente os desenhos animados) e até mesmo seus próprios anúncios ou vinhetas: dizer que as de antigamente são “da hora” e as de hoje são “uma porcaria” é negar a própria evolução tecnológica que permitiu a produção de materiais de maior qualidade em menos tempo e com emprego de menos recursos (que é o que nossa lógica capitalista sempre almeja) e que permitiu, inclusive, o advento da própria internet e deu aos usuários desta a oportunidade de compartilhar publicamente as gravações destes registros televisivos que estariam outrora somente em fitas VHS escondidas sujeitas ao mofo e à desmagnetização. Irônico, né? Usar a tecnologia do presente para se refugiar no passado... Claro, há um viés positivo deste fenômeno: ajuda a consolidar no imaginário coletivo e a formar na materialidade uma história, uma consciência diacrônica da multimídia cultural local/global. Mas quantos já não foram os jovens de mentes confundidas que encontrei propagando ecos de cybertiozões, da mesma forma que Melody foi influenciada por Boris Yelnikoff em Tudo pode dar certo?

O parágrafo a seguir, com a licença dos leitores, é 100% subjetivo e opinativo. E 0% científico. Perdoem-me os meus colegas de academia. Mas o que quero dizer é que recordar o passado é diferente de tentar recriá-lo para refugiar-se nele, que não se resolve nada dando passos pra trás quando se pode reconhecer uma atual posição no tempo e no espaço, ou seja, uma condição sincrônica, e a partir disso começar a dar passos pra frente rumo à construção de um futuro melhor (não, isto não tem conotação política). Que o envelhecimento começa na mente, na alma de quem enferruja a própria sensibilidade e se isola no condomínio do comodismo. Que ninguém precisa reafirmar sua maturidade esfregando-a na cara dos mais jovens, nem tampouco portar-se como um messias ideológico perante uma juventude que porventura seja considerada “perdida”, ignorando a confusão cultural feita na cabeça dos mais sujeitos ao zeitgeist (espírito da época, em alemão) presente. Mas, ainda assim, se fosse possível conceder a qualquer ser humano o presente divino de não pertencer a nenhuma geração, para não ter de entrar em conflito com as outras que se seguirão, esta “bênção” seria permanentemente arquivada, pois privaria o indivíduo de descobrir por conta própria, como parte de sua evolução endoconstituitiva, o quanto este conflito é divertido.


Resultado de imagem para boris yellnikoff
Ah, minha querida, agitar James Brown que era bom; o que chamam hoje de funk sequer merece este nome! 


Para encerrar a discussão, segue o clipe do projeto musical Justice, “DVNO”, que usa a atual tecnologia de CG para fazer vinhetas no estilo Scanimate, mostrando como é possível que influências do passado possam conviver perfeitamente com criações para o presente, gerando um resultado híbrido e proveitoso.



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