Até onde querer
voltar ao passado ou mantê-lo vivo se torna um problema em vez de um hábito
saudável? O assunto e o interesse são bem pessoais, mas valem o
compartilhamento, visto que me descobri já há algum tempo como membro de uma bem
povoada geração kidult trash 80’s criada no meio de Thundercats, Xuxas, Super
Mários, Lombardis, Mussuns e Bancos Imobiliários regidos sob a batuta da grande
babá eletrônica.
São poucas as pessoas que têm lembranças claras de sua infância. Na maioria das vezes, são imagens difusas, desconexas, com variações extremas de significância externa. Ocorrendo fatos ruins na infância, então, esta lembrança pode ser facilmente apagada ou jogada no “arquivo morto” da memória. Em meu caso particular, estão incluídos maus tratos em creches, constantes brigas dos pais, históricos de doenças mentais na família e uma broncopneumonia que quase me matou aos 3 anos de idade. E é o que minha família me conta: eu mesmo lembrava-me de muito pouco, quase nada. Meu interesse sobre meu passado residia numa teoria de que muitas ações estranhas ou mesmo absurdas da minha parte partiam de (boas ou más) aprendizagens da infância no meu inconsciente.
São poucas as pessoas que têm lembranças claras de sua infância. Na maioria das vezes, são imagens difusas, desconexas, com variações extremas de significância externa. Ocorrendo fatos ruins na infância, então, esta lembrança pode ser facilmente apagada ou jogada no “arquivo morto” da memória. Em meu caso particular, estão incluídos maus tratos em creches, constantes brigas dos pais, históricos de doenças mentais na família e uma broncopneumonia que quase me matou aos 3 anos de idade. E é o que minha família me conta: eu mesmo lembrava-me de muito pouco, quase nada. Meu interesse sobre meu passado residia numa teoria de que muitas ações estranhas ou mesmo absurdas da minha parte partiam de (boas ou más) aprendizagens da infância no meu inconsciente.
E do que eu
conseguia me recordar? Majoritariamente, de um medo absurdo e irracional de tevês
CRT desligadas e de vinhetas antigas.
Como aconteceu
com boa parte das crianças dos anos 80 e 90, era de praxe ser colocado em
frente à TV nos momentos em que os pais se divertiam ou tinham de resolver
questões particulares. Por vezes, quando minha mãe saía, assistia TV sozinho
até acabar a programação. Isto mesmo: naqueles tempos praticamente TODOS os
canais encerravam suas programações para manutenção dos equipamentos – para
quem quer saber como é, a TV Cultura faz isso até hoje, com o hino nacional e
imagens do país (Clique aqui se não quiser ficar acordado até de madrugada). Só
quem ficou assistindo filmes de terror e suspense durante a madrugada e dormiu
durante os mesmos sabe quão pavoroso é acordar com a vinheta de encerramento
das transmissões. Mas o mais duro dos CRT’s era a radiação dos tubos logo após
o desligamento. Se você tivesse acabado de assistir um jornal por meia hora
antes de desligar, por exemplo, o que ficava na tela era a “sombra” radioativa
do apresentador. Para muitas crianças como eu, era, de fato, um “fantasma”...
BUUUUuuuuuu...
E as vinhetas?
Claro! Praticamente todas elas eram feitas em duas máquinas de computação
gráfica gigantescas (aproximadamente 10 x 2m) e pré-históricas (inventadas em
1968): o Scanimate, a mais historicamente famosa, e a Slit-scan, sua irmã menos
conhecida, que recentemente virou app para IPad. As emissoras de TV geralmente
encomendavam a uma empresa americana de CG, a Dolphin Productions, os pedidos
de vinhetas e animações. A maioria era num fundo preto, com samplers
disco-trash medonhos. Fiquei muito contente ao saber que não era o único ao
sentir um certo frio na espinha ao ver algumas delas: a lista de comentários no
YT é longa!
Enfim, virei um
viciado em (e colecionador de) vinhetas antigas de TV postadas por diversos
profissionais e ex-profissionais de CG televisiva no Youtube para a alegria de
muitos. E nisto tive meus benefícios: a almejada recuperação de diversas
lembranças da infância a partir dos 4 anos (1987), o que me ajudou bastante no
meu caminho de autoconhecimento e de compreensão da minha psique. E deixei de
pensar que esta “pira” era exclusivamente minha. Mas uma coisa me deixou
chateado: ao mesmo tempo em que os usuários da “TV virtual” construíram
coletiva e descompromissadamente uma história da VHF/UHF brasileira (aliás,
mundial), também foi notada uma alta emissão de frequências saudosistas e
reacionárias na linha do “não se fazem mais destes como antigamente” ou do
“hoje em dia é tudo uma porcaria”. E não é só referente a vinhetas e programas,
mas a outras expressões artísticas, em especial a música.
(Observo agora
que tanto saudosismo quanto nostalgia soam termos “incompletos” para a
descrição do tema trabalhado. O primeiro tem a ver com a corrente literária
portuguesa do início do século XX; o segundo é um tipo de sentimento que todos
nós podemos ter de maneira saudável. Instauro aqui um termo híbrido adequado –
“web-retrô”, paralelo a outro que pode ser usado em tom pejorativo:
“cybertiozão”. Fiquem avonts para espalhar as gírias e não esqueçam de me
creditar, OK?)
No decorrer de
nosso crescimento, passamos por boas e más experiências. Dependendo da intensidade
e do impacto das mesmas, podemos armazená-las permanentemente ou guardá-las no
inconsciente, isolando alguns elementos destas para resgatá-las quando
julgarmos necessário ou conveniente, como se fossem tags de busca. Uma paisagem, um objeto de época, um sabor ou aroma,
um elemento cultural, entre outros, podem servir como catalizadores de
determinadas recordações. No caso das más lembranças, estas são constantemente
evitadas, mas os catalizadores externos reevocam-nas “acessando” as tags mentais, sem que haja intenção
nossa. Por exemplo: passar sem querer em frente à escola da qual você foi
expulso por indisciplina ou na qual sofreu bullying
certamente lhe trará más lembranças. Já com as boas, é diferente: um objeto
material ou uma pequena recordação psicológica é por nós arquivada como tag para que acessemos intencionalmente
estas lembranças, como um diário, um álbum de figurinhas, uma peça de roupa de
alguém, uma música, uma série ou desenho animado.
No caso do
fenômeno web-retrô, predominam dois elementos:
- A nostalgia, descrita como “uma sensação de saudade de um tempo vivido, frequentemente idealizado e irreal”. A nostalgia também é qualificada como um sentimento que surge a partir da sensação de não poder mais reviver certos momentos da vida;
- O escapismo, definido como “o alívio ou a distração mental de obrigações ou realidades desagradáveis recorrendo a devaneios e imaginações”. Manifesta-se, por exemplo, na busca da natureza, na fuga para o passado próximo (a infância) ou distante (a Idade Média), o sonho, a fantasia ou até mesmo a morte. Podemos definir escapismo também como a “desconsideração da realidade”. Um trecho da música Ska, dos Paralamas do Sucesso, soa bem esclarecedor: “relembrando da janela tudo o que viveu / fingindo não ver os erros que cometeu”.
Os conflitos
ideológicos entre gerações acabam fomentando, em boa parte dos mais velhos (principalmente se sociopatas enrustidos),
sentimentos de inadaptação, deslocamento psicológico da posição
espaço-temporal, constante reafirmação dos elementos culturais internos
(posturas, costumes) e externos (expressões artísticas ou técnicas) pelo
indivíduo adquiridos e conservados, entre outras táticas de defesa que o
reacionário emprega quase como uma espécie de instinto animal perante o novo sempre que este ameaça o seu nomos, ou seja, seu conjunto de crenças
e valores que constitui sua visão de mundo. É isto que faz com que qualquer
filme, grupo musical, novela, etc., que tenha sido um sucesso “das antigas”
seja sempre melhor do que os equivalentes da atualidade, na visão do cybertiozão.
É a plena negação do eixo diacrônico (ou, simplificando, da própria evolução) do elemento social ou cultural
escolhido como alvo. Alguns podem dizer que “é a cara” dos trintões/quarentões/cinquentões
“digitalmente incluídos” da atualidade que andam infestando as redes sociais.
Logo, surge a questão: “O que há de errado nisto”?
Toma-se por
base metonímica a própria questão das atrações televisivas (especialmente os
desenhos animados) e até mesmo seus próprios anúncios ou vinhetas: dizer que as
de antigamente são “da hora” e as de hoje são “uma porcaria” é negar a própria
evolução tecnológica que permitiu a produção de materiais de maior qualidade em
menos tempo e com emprego de menos recursos (que é o que nossa lógica
capitalista sempre almeja) e que permitiu, inclusive, o advento da própria internet e deu aos usuários desta a
oportunidade de compartilhar publicamente as gravações destes registros
televisivos que estariam outrora somente em fitas VHS escondidas sujeitas ao
mofo e à desmagnetização. Irônico, né? Usar a tecnologia do presente para se
refugiar no passado... Claro, há um viés positivo deste fenômeno: ajuda a
consolidar no imaginário coletivo e a formar na materialidade uma história, uma
consciência diacrônica da multimídia cultural local/global. Mas quantos já não
foram os jovens de mentes confundidas que encontrei propagando ecos de
cybertiozões, da mesma forma que Melody foi influenciada por Boris Yelnikoff em
Tudo pode dar certo?
O parágrafo a
seguir, com a licença dos leitores, é 100% subjetivo e opinativo. E 0%
científico. Perdoem-me os meus colegas de academia. Mas o que quero dizer é que
recordar o passado é diferente de tentar recriá-lo para refugiar-se nele, que
não se resolve nada dando passos pra trás quando se pode reconhecer uma atual
posição no tempo e no espaço, ou seja, uma condição sincrônica, e a partir disso começar a dar passos pra frente rumo à
construção de um futuro melhor (não, isto não tem conotação política). Que o
envelhecimento começa na mente, na alma de quem enferruja a própria
sensibilidade e se isola no condomínio do comodismo. Que ninguém precisa
reafirmar sua maturidade esfregando-a na cara dos mais jovens, nem tampouco
portar-se como um messias ideológico perante uma juventude que porventura seja
considerada “perdida”, ignorando a confusão cultural feita na cabeça dos mais
sujeitos ao zeitgeist (espírito da
época, em alemão) presente. Mas, ainda assim, se fosse possível conceder a
qualquer ser humano o presente divino de não pertencer a nenhuma geração, para
não ter de entrar em conflito com as outras que se seguirão, esta “bênção”
seria permanentemente arquivada, pois privaria o indivíduo de descobrir por
conta própria, como parte de sua evolução endoconstituitiva, o quanto este
conflito é divertido.
![]() |
Ah, minha querida, agitar James Brown que era bom; o que chamam hoje de funk sequer merece este nome! |
Para encerrar a
discussão, segue o clipe do projeto musical Justice, “DVNO”, que usa a atual
tecnologia de CG para fazer vinhetas no estilo Scanimate, mostrando como é
possível que influências do passado possam conviver perfeitamente com criações
para o presente, gerando um resultado híbrido e proveitoso.
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