quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Uma breve história do motoclubismo no Brasil e no mundo



Ponha o motor pra funcionar

Dirija-se para a estrada

Em busca da aventura

Não Importa o que aconteça em nosso caminho




(tradução da primeira quadra de versos de “Born to be wild”, da banda Steppenwolf)


Não é que os moto clubes pareçam todos iguais; o fato é que eles seguem os mesmos cânones (padrões) de comportamento: motos iradas (em sua maioria, customs – o estilo das famosas Harley-Davidson), viagens pelo país todo, roupas de couro e metal ou de motivos militares, cerveja e rock n’ roll. Os simpatizantes nem sempre buscam a origem deste estilo de vida, como começou e porque é o que é hoje: eles simplesmente acham “muito louco” e pronto: quando vêem, estão dentro, acompanhando tudo.




Também, isto exigiria um esforço maior do que frear uma “viúva negra” a mais de 140 km/h. A história é longa e cheia de polêmicas e curiosidades. Uma das principais é que, apesar de o formato de MC ser essencialmente importado dos EUA, acredita-se, dentro de uma discussão ainda não encerrada, que o primeiro moto clube do mundo seja... BRASILEIRO!

O Moto Club do Brasil, fundado em 1927 na Rua Ceará, no Rio, é o ancestral do atual Moto Clube de Campos, o mais antigo moto clube brasileiro em atividade. Importou do primeiro, inclusive, a estrutura estatutária. O site http://www.motoclubdecampos.com.br/historia.htm menciona:

“Entre um lanche que desfrutavam e conversas animadas sobre um prazer comum, motocicletas, foi proposta pelo senhor Luiz Falcão a este grupo composto por outros seis amigos a criação de um centro motociclista que teria como objetivos organizar passeios recreativos, piqueniques e bailes (Afinal de contas estamos falando do início do século 20)”.

A aparência evolui; a essência permanece. Nos motoclubes atuais, os passeios recreativos viraram viagens com dias de duração, enquanto os piqueniques e bailes converteram-se nos mega-eventos com shows, campings e churrasco 0800.

Mas não significa que, no mundo, especialmente nos EUA, não houvessem surgido outras agremiações locais ou nacionais de motociclistas. Em 1903, alguns membros do New York Motorcycle Club viram a necessidade da criação de um comitê nacional para convergência de interesses e lutas por direitos específicos. Surgia assim a Federação Americana de Motociclistas – FAM, que teve como um dos membros mais notáveis George M. Hendee, um dos donos da histórica Indian Motorcycle Company.

Durante seus 16 anos de existência, a FAM manteve um número de membros sempre na casa dos milhares. Em 1915, eram 8.247. No entanto, com a 1ª Guerra Mundial, as elevadas baixas por morte, invalidez ou não-retorno à pátria fizeram a entidade fechar as portas em 1919. Os poucos interessados em dar continuidade à paixão por motos migraram para a M&ATA (Motorcycle and Aliied Trades Association), fundada em 1916. Organização de competições, viagens e festas era a praxe a associação. Desta, uma divisão de corredores ganhou tamanho e autonomia a ponto de se desmembrar e se transformar na AMA (American Motorcycle Association – Associação Americana de Motos) em 1924.

Excesso de exigências legais e formais e discriminação econômica (mesmo no período do crash de 29 e da grande depressão que se seguiria), entre outros fatores menores, fizeram com que muitos amantes de motos, sozinhos ou associados, não conseguissem se alinhar ou mesmo não fizessem questão do ingresso à AMA. Assim, Surgiam os outlaws (foras-da-lei) motorcycle clubs. Não que fossem associações “criminosas” – elas simplesmente não estavam alinhadas à AMA nem a reconheciam como entidade oficial. Com maiores liberdades de atuação e comportamento, este seria o modelo ancestral dos MC’s “de tradição” atuais.

Imagem do site do Outlaws MC
O inaugurador desta linha de filosofia sobre 2 rodas foi o Cook Outlaws MC, inaugurado em 1936 e em atividade até hoje, renomeado como Outlaws MC. Como, ao longo de sua existência, mudou de nome e estrutura 2 vezes, não é considerado, segundo a AMA (a mesma entidade à qual o MC não se alinhou desde o início de sua existência), o motoclube mais antigo em atividade. A carta patente do título foi concedida ao Motormaids MC (é isto mesmo que você está pensando: um motoclube exclusivamente feminino), cuja integridade foi mantida desde a fundação em 1940.

Uma das primeiras fotos do Motormaids MC



Influência da 2ª guerra mundial


As incursões nos campos de batalha nos países do Eixo (Itália, Alemanha e Japão), quando exigiam uma rapidez similar à de um blitzkrieg, eram feitas por duplas de soldados (os brothers in arms) em motos. O livro de William L. Dulaney, Uma breve história dos Moto Clubes Americanos, explicita:

“Com o fim da 2ª guerra mundial, milhares de jovens regressaram para casa. Alguns combatentes haviam sido treinados para guiar motocicletas em plena guerra, especificamente Harleys e Indians. Outros, que não haviam trabalhado diretamente com motocicletas, eram levadas a andar nas mesmas para aliviar a pressão do conflito armado. Por fim, dificilmente se encontraria algum soldado americano que tenha participado da 2ª Guerra que não tenha guiado uma motocicleta. Um ponto é interessante destacar: Os homens que participavam de um pelotão, fossem eles fuzileiros navais, infantaria, reconhecimento etc., eram disciplinados a cuidar do seu parceiro do início ao fim dos combates. As constantes incursões de guerra altamente fatigantes desenvolveram um alto nível da interdependência nos membros de um pelotão. Durante os combates reais vivenciaram a morte lado a lado, bem como o gosto por matar o inimigo, entre outras atrocidades. Neste campo de vida e morte os homens transformaram-se em irmãos e muitos veteranos da 2ª guerra trouxeram esta irmandade para a vida civil. Muitos desses soldados não conseguiram suportar a transição do ambiente de guerra para a monotonia da existência civil, buscando, assim, outra forma de viver.”

Assim, surgiram sobreviventes da guerra portadores do ainda desconhecido estresse pós-traumático (PTSD – reconhecido como doença somente em 1980), viciados em adrenalina e totalmente inadaptados ao retorno à vida civil. Destaca Fernando Marchi, do Rotax MC, de Serra Negra – SP:

“A AMA logo percebeu que a guerra havia exposto muitos americanos às motocicletas e que os veteranos voltaram com experiências fantásticas em cima das Harley Davidson WA45, experiências estas que eles fariam tudo para continuar vivenciando. Ansiosa em manter estes novos motociclistas, a AMA passou a organizar competições, viagens e gincanas com um entusiasmo renovado. Entretanto, a guerra não é o exercício mais saudável para a mente de quem combate no front, e estes novos motociclistas farreavam muito mais que os motociclistas tradicionais. Sua rotina se resumia quase sempre a festas, disputas, bebedeiras e como era inevitável, algumas brigas. Talvez buscando retomar o tempo perdido. A população tolerava esses excessos porque os motociclistas tinham a seu favor o fato de terem defendido seu país na guerra, apesar de tudo isso estar sendo financiado pelas pensões do governo, o que posteriormente pesaria contra os veteranos, quando, saindo da depressão, a América tentava otimizar seus custos com o apelo ao apoio da população.”

Tal tolerância iria encerrar-se no famoso Incidente de Hollister, uma pequena cidade da Califórnia que recebeu, em 1947, uma competição da AMA que, devido a falhas de organização, resultou naquilo que a revista Life espalhou como “um cerco à cidade”. Alguns dos motociclistas participantes passaram a explorar toda a cidade e seus arredores (e não somente a área restrita ao evento) bebendo, tirando rachas, brigando, depredando patrimônios e cometendo atentados ao pudor. Hollister virou um mito na história do motociclismo americano, visto que a maioria das testemunhas oculares do evento já faleceu e mesmo os testemunhos dados anteriormente são atualmente considerados “imparciais”. Também há registros de que a cidade já tenha abrigado pacificamente outros eventos de motociclismo, como a famosa Gypsy Tour, em 1936.
Hollister antes de ser modinha em camisa de playbonde...

O evento de 47 ficou eternizado no imaginário da população americana através do filme O selvagem (The Wild One, 1953), com Marlon Brando no papel do líder de gangue Johnny Stabler. Note-se que o emblema da jaqueta do rebelde (similar à uma bandeira de pirata, com uma caveira, mas dois pistões no lugar dos dois ossos cruzados), influenciou a criação do emblema do Outlaws MC, o qual anteriormente tinha como uniforme apenas um suéter com o nome do MC costurado. Hoje, Hollister aproveita o mito para fins turísticos e recreativos de forma pacífica. Tanto que, em 1997, diversos motociclistas se dirigiram para lá para comemorar os 50 anos do incidente. Novamente, a cidade não teve estrutura para abrigar ou suportar a legião incontável de motociclistas.

Uma hipotética (porque nunca concretamente exibida) nota da AMA à revista LIFE, em resposta ao artigo desta que supervalorizava o incidente de Hollister, na qual era desmentida a participação da associação no evento e se afirmava que “99% dos motociclistas dos motociclistas eram pessoas de bem, cidadãos cumpridores da lei, e que os clubes de motociclistas da AMA não estiveram envolvidos na baderna”, além da nota do editor do periódico Motorcyclist, Paul Brokaw, que falava: “Nós reconhecemos, lamentavelmente, que houve uma desordem em Hollister – não ato de 4.000 motociclistas, mas de um por cento desse número, ajudada por um grupo de não motociclistas apostadores. Nós, de forma alguma, estamos defendendo os culpados – de fato é necessária uma ação drástica para evitar o retorno de tais comportamentos”, foram determinantes na formação da opinião pública americana sobre o motoclubismo: na grande maioria, a vilanização. Tanto que é por conta da vinculação das Harleys e Indians a Hollister e à guerra que começam a entrar no mercado as motonetas “bata-bata” descoladas e “inofensivas” de Soichiro Honda, que iriam mudar para sempre o uso comercial e cotidiano das motocicletas nos EUA.


Vietnã, ditadura e Heavy Metal


O motociclismo americano, nos anos 50 e 60, começa a sofrer modificações em dois planos:

  • No plano da ficção, onde a fama do filme O selvagem alavancou de modo positivo uma série de outras produções hollywoodianas que associavam a moto ao espírito rebelde, expansivo, contestador e aventureiro da nova juventude americana - Elvis Presley com Roustabout, Steve McQueen com A grande fuga e, como auge do tópico, Easy Rider: sem destino, cuja abertura imortalizou a canção “Born to be wild”, do Steppenwolf, como uma espécie de hino internacional do motoclubismo de tradição;
  • No plano da realidade, com o surgimento dos motoclubes que faziam questão de ser o “1%” citado na defesa da AMA (ou seja, não alinhados à instituição e sem regras explícitas, preferindo os códigos de ética informais), além das rivalidades entre gangues, os constantes ataques da imprensa e as noções de divisão de território e limite geográfico.

É graças a esta série de filmes exibidos nas principais nações desenvolvidas e em desenvolvimento (inclua-se o Brasil) e às expedições e viagens internacionais de motociclistas americanos para outros países que a cultura do motoclubismo se expandiu, notoriamente nos anos 70, embora no Brasil já houvesse motoclubes que seguiam os princípios de irmandade e os padrões estéticos e comportamentais internacionais, com destaque a dois vivos até hoje: o Zapata MC (fundado em 1963) e o Balaios MC (1969). Note-se que, junto com a estética MC vigente, foram importados também os conceitos de contracultura e de resistência ao sistema, muito presentes nos setores sociais americanos que eram contra a guerra do Vietnã, entre outras ações imperialistas dos novos “xerifes do mundo”, e os próprios nomes dos MC’s remetem a revoluções populares anti-sistema, o que tornou estas organizações verdadeiros ícones de resistência à ditadura militar (1964-1985).

Já na terra de origem das choppers, a coisa ia ainda pior. A guerra do Vietnã era desaprovada pela grande maioria da população. Mães perdiam filhos para o exército. Se, na 2ª guerra, a média dos recrutas era de 26 anos, nos anos 70 havia caído para 19; eram mentes ainda em formação e, portanto, ainda mais suscetíveis ao oculto e ignorado PTSD. Como se a decisão de guerrear tivesse partido da vontade dos próprios soldados (e não da decisão familiar ou do alistamento obrigatório, como foi na realidade), estes jovens sobreviventes eram chamados de “bebês assassinos” e chegaram a ser recusados pelas suas próprias famílias e por diversos empregadores. Tudo isso após arriscarem suas vidas para defender o país em sua primeira guerra perdida; uma verdadeira ferida aberta na moral coletiva americana.

Seriam estes jovens, que se concentravam em acampamentos de guerra ouvindo bandas como Black Sabbath, Creedence Clearwater Revival e o próprio Steppenwolf, que dariam o gás extra no motoclubismo de tradição americano para consolidá-lo como cultura mundial, após retornarem a uma pátria que já não lhes aceitava mais. Neste momento, consolidava-se o amálgama de elementos formadores da personalidade individual/coletiva do motoclubista: os acessórios de couro e os emblemas de Johnny Stabler, as motos estilo custom derivadas das Harleys e Indians do exército, a aparência de mau de um ex-guerrilheiro do Vietnã, o espírito de liberdade de Easy Rider, a busca incessante de adrenalina e desafio de um portador de PTSD pós-guerra e o gosto pelas vertentes mais pesadas do rock e do heavy metal em voga nos anos 70, 80 e 90.


O boom do motoclubismo no Brasil


Como alguns motoclubes americanos se expandiram a ponto de fazer viagens internacionais e estender ramificações para outros países (como o Hell’s Angels MC, o maior do mundo na atualidade), o motoclubismo de estrada foi se expandindo até o Brasil. Porém, com um contexto diferente, inclusive um pouco mais pacífico do que a realidade norte-americana, natural que a preferência aqui fosse a de uma espécie de “romantismo”, onde o foco era o prazer do convívio mútuo e da irmandade em viagens longas, estórias ao pé da fogueira, tudo regado a muito rock, cerveja e churrasco.

O atraso foi tirado na década de 90, quando o governo brasileiro passou a liberar diversas importações, inclusive as de carros e motos (ou seja, ficou muito mais fácil ter uma Harley-Davidson), além de os designs da referida empresa terem sido vendidos para que as montadoras japonesas pudessem construir motos como a Honda Shadow, Yamaha Dragstar e Suzuki Boulevard, motos claramente inspiradas no estilo custom americano.

Assim tanto surgiram motoclubes mais ligados à pratica do mototurismo old school (como os vinculados à Federação de Motoclubes do Estado de São Paulo – FMC) quanto os “1%”, que pretendiam resgatar o espírito motoclubista legitimamente americano (notadamente o Abutres MC, um dos maiores do país na atualidade).

Hoje os motoclubes atraem muitos simpatizantes: pessoas que não andam de moto e não tem tanto costume de viajar, mas têm muita amizade com integrantes de MCs e costumam frequentar os eventos por eles organizados, nos quais o bom e velho rock n’ roll sobrevive em meio ao apelo popular de outros estilos nacionais antipatizados (funk, axé, sertanejo universitário, etc.) e as antigas brigas por território dão lugar à confraternização entre diversos grupos e boas lembranças e estórias de viagens em parceria e outros causos da estrada.

Claro que há outras formas de associação entre motociclistas, como às voltadas para competições esportivas e manobras artísticas, estas mais sincronizadas com o comportamento moderno, mas geralmente quando se fala em motoclube o mais notado é o old school ou de tradição, justamente por uma presença mais aberta e ativa na sociedade, no qual seus membros geralmente andam coletados em seu cotidiano, organizam eventos abertos e, em muitos casos, promovem campanhas de solidariedade, como visitas em orfanatos e entidades assistenciais, distribuição de alimentos e roupas, auxílio a moradores de rua e parcerias com órgãos públicos. Apesar de o estilo de vida ser centrado na vida sobre duas rodas, o espectro de atuação é muito mais amplo e tende a atrair simpatia mesmo que, à primeira vista, muitas pessoas comuns se sintam assustadas com a aparência agressiva e anacrônica do motoclubista padrão.

Esta é uma história coletiva em construção. Ainda há quilômetros e quilômetros de outras estórias embaixo de capacetes adesivados a serem ouvidas e escritas. Keep on running on the free world!



Um comentário:

  1. UAU! Que post bacana!

    Nós falamos sobre motoclubes no Brasil em nosso site. Depois, dê uma passada lá e nos diga se gostou :)

    https://elcosturas.com.br/os-maiores-motoclubes-do-brasil/

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