Mostrando postagens com marcador crônica. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador crônica. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Prosa inspirada por uma insônia, uma cuba libre e uma mistura de lembranças e projeções.

Na fila da lotérica (ou: coca-cola de noite nunca mais)


Hoje os fins vão substituindo os meios. Menos poesia, mais putaria. Um jovem grafita no muro “Mais amor, por favor” enquanto no som do seu carro se ouve “Não existe amor em SP”. No dia seguinte, alguém havia riscado o amor e escrito “gangbang” logo abaixo.

Multidões não alcançam o amor. Anseiam-no. Fetichizam-no. Mentem-no. Simulam e emulam-no. Na falta dele, renomeiam como amor vários outros sentimentos menores. Amor 2.0, amor 3.11, NT, XP, versão beta, professional edition, director’s cut, Ultra Diamond VIP Plus com tudo o que o dinheiro pensa comprar.




Mas quem sou eu pra falar do amor? Do amor dos outros? Do amor do mundo? Só posso falar do meu. Do que aprendi a desenvolver pela minha amada graças ao prazer que ela me deu quando cedi às pressões sociais e familiares pra casar. Do que tive pelos meus filhos, enquanto me foram leais e me tomavam como espelho até virem as mancadas, os desrespeitos e as asas que lhes fizeram ganhar o mundo e esquecer-se de mim.

De mim, sim! Eu, que também já achava um saco tantos anos com a mesma mulher (e uma ou outra amante de vez em quando para relembrar as sensações de conquista e poder de outrora). E o amor foi virando companheirismo, convívio, amparo, tolerância, paciência assando lentamente na brasa... Já ia migrando pro arrependimento, enchendo a jarra de fel e esvaziando a garrafa de pinga, quando ela morreu. “E agora? Não era o que você queria no seu íntimo?”

No dia seguinte, li numa revista algo sobre o casamento ser uma instituição. E realizei: o amor dela me institucionalizou! A minha vida, que era um saco, arrebentou-se e me deixou no vácuo, sem razão de ser e sem coragem de não ser.

Hoje, um quadro no MASP me dá mais impressão de movimento do que a paisagem urbana. Exercito minha intuição no bingo para esconder minha indisposição e minha incapacidade de aprender algo novo e útil. E os roteiros que faço nos ônibus da cidade às custas das passagens gratuitas só servem para eu me esquecer de como estou perdido nessa vida desde que abandonei sonhos maiores de juventude sem saber que eles eram minhas bússolas. Do Oratório à Consolação. Do Paraíso à Liberdade. Da João Bicudo à Heitor Penteado. Do Pico do Jaraguá ao Beco do Jaguaré. Da Vila dos Remédios ao estouro da conta na farmácia. Santa Casa de Misericórdia, tende piedade da categoria do meu convênio...

“E a gente vaaai leeevando, a gente vaaai leeevando...”

Então, na boa, deixe-me resmungar sobre como tudo era melhor antigamente. É o que me resta por não saber lidar com esse nosso presente. Deixe-me acreditar que minha opinião sobre as coisas mudará o mundo e influenciará positivamente os mais jovens como você, seu vagabundo! Deixe-me pensar que minha experiência servirá para algo novo, e que cada roda de conversa na fila da lotérica ou do INSS renderia livros muito melhores do que estas sagas importadas que vocês andam lendo por aí. Deixe-me voltar no tempo em pensamento para esquecer o tempo real que não consigo controlar.

E que Deus abençoe a teoria das cordas, a aleatoriedade e a roda da fortuna, para que eu ganhe na Tele-Sena, isole-me em um sítio e morra em paz, AMÉM!






*Nota: trata-se da construção de um personagem singular, e não metonímico. Não é uma ofensa aos velhos em geral ou à velhice, mas sim às formas de condução e tomadas de decisões na vida. Melhor explicar antes que saiam me crucificando por aí, mesmo que este blog tenha poucos leitores.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...