domingo, 4 de novembro de 2012

Desmistificando o reggae e o rastafarianismo moderno


Ahhh o Reggae... basta ouvir a guitarrinha fazendo “nhec... nhec... nhec... nhec...” que já vem à cabeça uma série de ícones: praia, erva, relax, dread, luau, penduricalhos... e, claro, a invocação ao Jah Rastafari, entidade que só surge nos momentos em que se está “nas alturas”...

Pra quem curte reggae de verdade, o rastafári é, de fato, uma religião. Mas em um viés atenuado com relação ao verdadeiro rastafarianismo, filosofia religiosa seguida só por quem é realmente “true” de verdade (e, sim, o pleonasmo triplo é intencional). E o que está por trás destas neblinas verdes que partiram da Jamaica e se espalharam pelo mundo todo? Começa-se a entender o fenômeno a partir de fatos que não possuem ligação imediata com o objeto, mas são a base contextual histórica deste. Retornemos, mais precisamente, ao período do neocolonialismo africano.




Negritude


Você já teve a impressão de que o mapa da África possui fronteiras entre países tão retas que dão a impressão de que foram traçadas com uma régua? Pois bem, isto não é impressão tua. A Conferência de Berlim (1884-1885) estabeleceu regras para que as grandes potências europeias explorassem o continente africano, coisa que já era feita indiscriminadamente desde o século XVI. Sob os pretextos de expansão do modelo civilizacional europeu e da agregação do continente africano ao ciclo econômico vigente, Alemanha, França, Bélgica, Espanha, Reino Unido, Portugal, Itália e Holanda definiram, de maneira não lá muito pacífica entre eles (e nem um pouco pacífica com relação aos povos nativos africanos) as divisões territoriais de atuação de cada nação colonizadora. Se os povos nômades já tinham lá as tuas guerras e disputas sazonais, as novas divisões fronteiriças pioraram ainda mais a situação, agrupando tribos rivais dentro de um mesmo território ou mesmo fracionando as áreas de atuação e circulação de outras tribos. Esta desunião entre os povos só fortaleceu a presença europeia: se antes um povo derrotado numa guerra era feito de escravo pelos rivais vencedores, posteriormente estes escravos passaram a ser comercializados pelos colonizadores. Mais tardiamente, os vencedores anteriores também eram capturados pelos europeus. Se, durante os séculos XVI a XIX, a escravidão era um regime comercial levando os nativos de dentro do continente para fora, após a Conferência, a maioria dos povos africanos se viu escravizada dentro de teu próprio continente.
Gráfico da evolução da corrida colonial. Atentar ao continente africano...


Parte deste projeto envolvia levar alguns dos nativos com maior capacidade intelectual (ou membros de clãs tradicionais com os quais se negociava alguma forma de poder) para estudar na metrópole. Seriam europeizados e, portanto, retornariam às colônias se fazendo de representantes dos povos locais para, então, continuarem a dominação metropolitana de maneira mais sofisticada. No entanto, o tiro saiu pela culatra, principalmente na França, onde estudantes negros vindos de diversas colônias francesas africanas e americanas (Antilhas, Senegal, Congo, etc.), após adquirirem maior esclarecimento nas tuas respectivas faculdades (notadamente a Sorbonne), passaram a reimpor a cultura e a identidade negras perante a opressão dos colonos. Nascia na década de 30, então, o movimento literário e filosófico denominado Negritude, que pregava a união entre os diferentes povos africanos para fortalecer a luta contra o neocolonialismo e, só após a vitória, passar para a resolução dos conflitos internos advindos daquele, antecipando os sentimentos que formariam a utopia do pan-africanismo (de fato, já havia diversas correntes filosóficas menores que dispersavam esta ideia durante e após a I Guerra Mundial, mas esta é considerada a primeira oficial).

Selassie


Correndo por fora desta estória toda estava a Etiópia. Era o único território originalmente africano totalmente independente (a Libéria não entra na contagem por ser um território adquirido em 1821 pela Sociedade Americana de Colonização, formada por ex-escravos estadunidenses). A Etiópia se orgulhava e “batia no peito” ao dizer que já havia repelido diversas tentativas de colonização italiana. À frente desta nação, estava uma dinastia monárquica que reivindicava ser originária da linhagem de Salomão e Makeda (o biblicamente proibido real nome da Rainha de Sabá). O comando do país estava desde 1916 nas mãos do jovem Ras (regente) e posterior 225º imperador da dinastia salomônica em 1935, Tafari Makonnen.

(Aahhh... juntamos lé com cré e descobrimos a origem do nome Rastafari! Eu poderia dizer “agora corra pra teus amiguinhos e conte-lhes a curiosidade que você aprendeu hoje”, mas prefiro pedir-lhe que permaneça em atenção com relação ao texto).

Pois é, o primeiro Rastafari não tinha o cabelo rastafari... curioso, né?


O Ras Tafari tinha um plano ambicioso em mente. Ele tinha ciência das ideias independentistas dos diversos países africanos, bem como do levante da Negritude. Após colocar a Etiópia como membro permanente das Nações Unidas, ele se interpôs como uma espécie de porta-voz da África em geral, se utilizando de seu talento de exímio orador. Sirva de amostra um trecho de seu mais famoso discurso na Liga das Nações em 1936, sobre as guerras na África:

“Enquanto a filosofia que declara uma raça superior e outra inferior não for finalmente e permanentemente desacreditada e abandonada; enquanto não deixarem de existir cidadãos de primeira e segunda categoria de qualquer nação; enquanto a cor da pele de uma pessoa for mais importante que a cor* dos seus olhos; enquanto não forem garantidos a todos por igual os direitos humanos básicos, sem olhar a raças, até esse dia, os sonhos de paz duradoura, cidadania mundial e governo de uma moral internacional irão continuar a ser uma ilusão fugaz, a ser perseguida, mas nunca alcançada. E igualmente, enquanto os regimes infelizes e ignóbeis que suprimem os nossos irmãos, em condições subumanas, em Angola, Moçambique e na África do Sul não forem superados e destruídos, enquanto o fanatismo, os preconceitos, a malícia e os interesses desumanos não forem substituídos pela compreensão, tolerância e boa-vontade, enquanto todos os Africanos não se levantarem e falarem como seres livres, iguais aos olhos de todos os homens como são no Céu, até esse dia, o continente Africano não conhecerá a Paz. Nós, Africanos, iremos lutar, se necessário, e sabemos que iremos vencer, pois somos confiantes na vitória do bem sobre o mal.”
* melhor entendida como “brilho”

Dá vontade de chorar, né?

Nesta época, Tafari já havia se autonomeado Haile Selassie (“O poder da Trindade”, na língua nativa etíope ge’ez). A influência judaico-cristã não para por aí: O Rio Nilo seria, na visão de muitos estudiosos, o antigo Rio Gihom, o último limite a oeste do Jardim do Éden no Gênesis, e ali se situariam as terras de Cusí, exatamente no “chifre” da África! Ora, então a Etiópia seria, segundo a Bíblia, o berço de toda a humanidade!

É com base nisto que Selassie vai implantar sua proposta de Estado Ditatorial Teocrático na Etiópia, o qual se tornou vigente de 1941 a 1974. A intenção seria criar uma espécie de “Éden negro”, recuperando uma terra devastada pelos confrontos com os exércitos do fascista Mussolini, trazendo industrialização e modernização às áreas urbanas do país, taxando os latifundiários, criando a primeira constituição do país e implantando o voto universal aos cidadãos. Até aí, na teoria, tudo muito bonito. Mas, considerando as ideias correntes da Negritude e do Pan-africanismo (ideologia que propõe a união de todos os povos da África como forma de potenciar a voz do continente no contexto internacional – pedra de toque da criação da Organização da Unidade Africana, da qual Selassie fez parte) e a intenção de convocar todos os negros ex-cativos (ou descendentes destes) das antigas colônias para retornar aos seus territórios de origem a fim de ajudar a reerguer o Eden negro e restaurar a África destruída pela intervenção branca, o resultado previsto seria ainda mais abrangente: Selassie seria tão somente imperador da Etiópia, mas exerceria influência ideológica e política sobre TODO O CONTINENTE!

E este exercício seria corroborado pela religiosidade. Como dito antes, era uma monarquia teocrática. Isto incluía, entre outras práticas, a composição de hinos de louvor por parte da Igreja Ortodoxa Etíope a serem executados em cerimônias oficiais, nos mesmos moldes de outro grande conhecido da tradição cristã: o Rei Davi! (Nesta hora, você deve estar me perguntando: mas Davi não compôs os Salmos para DEUS? Diretamente sim, mas como estamos falando de um regime teocrático de Judá e, posteriormente, de todo o Reino de Israel, onde o rei é o representante de Deus na Terra, pode-se afirmar com propriedade que tais salmos, a serem declamados e musicados durante as celebrações, foram compostos por Davi para louvor indireto a... ele próprio!)

Bob Marley


As vozes do Rastafari não só ecoaram na África como chegaram às diversas ex-colônias abarrotadas de afrodescendentes (especialmente na região caribenha). No caso particular da Jamaica, onde 90% da população era negra, formou-se um caldeirão de elementos culturais dando um resultado sui generis: como diversas rádios de bebop e dancehall do sul americano enviavam sinais com potência suficiente para chegar à ilha, alguns grupos musicais da ilha não só tocavam os estilos, como também modificavam as formas originais, dando origem ao ska, o primeiro gênero musical genuinamente jamaicano. Duas bandas se destacaram neste período: os Skatalites, considerados os inventores do ritmo novo, e os Wailers, que tinham como destaque seu jovem e carismático vocalista, Robert Nesta Marley. O ska era naturalmente acelerado, mas o uso excessivo de álcool e maconha, o que já era corrente na época, não só deixava as pessoas mais “lentas”; chegava-se ao cúmulo de se reduzir a velocidade dos toca-discos para que as músicas fossem curtidas com a mesma “lentidão”. Assim surgia o rocksteady, que migraria das adaptações nas vitrolas à execução por parte das bandas. Um andamento modificado com velocidade intermediária entre o ska e o rocksteady (inclua-se a introdução da guitarra e do órgão nos tempos 2 e 4 do compasso quaternário) usualmente creditado ao organista jamaicano Bunny Lee, segundo a maioria dos historiadores da música jamaicana, seria o embrião do reggae, cujo nome pode remeter tanto ao termo do patois jamaicano streggae (largado, relaxado ou esfarrapado) quanto ao som que o conjunto guitarra/órgão fazia na nova batida inventada.

O pivetão Bob teve contato não só com a filosofia de Selassie (notadamente através do “profeta rastafári” Marcus Garvey) como também com um fenômeno sociocultural que efervescia nos EUA durante os anos 60 e 70: a contracultura. É sabido que não havia tão somente as guerras independentistas africanas neste período: havia também o financiamento americano das ditaduras sul e centro-americanas e, principalmente, a Guerra do Vietnã. Famílias, amores, amigos sentindo falta de jovens que foram convocados pelo exército para “morrer pela pátria e viver sem razão”. Protestos contra a guerra eram ineficientes ou sufocados. Assim, surgiu uma alternativa adotada por uma significativa parcela jovem/adulta da população para se eliminar a guerra aos poucos: deixando-se o “american way of life” de lado. Se a moda era cabelos curtos, barba feita e tecidos caros, semissintéticos e bem cortados, os que eram contra a guerra passaram a usar cabelos e barbas longos (e sem xampus e sabonetes, preferencialmente) e tecidos naturais. Carros davam lugares às bicicletas, às caminhadas e ao transporte público. Álcool, tabaco e cocaína foram totalmente abolidos, cedendo lugares à maconha, aos chás naturais (cogumelos, trombeta, etc.) e ao LSD (única droga “industrializada” aceita). Carnes processadas e outros derivados de animais, nem pensar; vegetais diversos plantados em hortas individuais de subsistência passaram a ser a grande forma de se alimentar. Os objetivos dos beatnicks e posteriormente dos hippies eram claros e certeiros: cessando suas participações no ciclo econômico de consumo americano, haveria uma queda drástica na arrecadação de impostos, o que forçaria o governo a repassar menos verbas para o exército até que não fosse mais financeiramente viável a manutenção da guerra.

À época, Bob Marley já possuía consciência de que o rastafarianismo poderia ser uma forma de contracultura negra em contraposição às duas propostas vigentes de imperialismo mundial que polarizavam o mundo branco desenvolvido: o capitalismo americano e o comunismo soviético. Enquanto EUA e URSS gastavam dinheiro com disputas de territórios na Ásia e mísseis nucleares que nunca foram lançados (ainda bem, né?), a África se reergueria como uma terceira via, alheia aos problemas do hemisfério norte. Seria um trabalho “de formiguinha” que a Organização da Unidade Africana teria pela frente, mas o plano tomou rumos inesperados por conta de dois fatos marcantes na história da África: a deposição e a morte de Hailé Selassie.

Nenhum regime governamental, seja de caráter humanista ou teosófico, está isento de problemas de corrupção, má gestão do patrimônio público, oposições golpistas ou até mesmo catástrofes naturais. A grande fome dos anos 70 no chifre da África, assim como as denúncias relativas a membros do governo etíope vigente, fizeram com que o povo já não desse mais os devidos temor e respeito a H.I.M (His Imperial Majesty, traduzindo: Sua Majestade Imperial – epíteto que Selassie adorava ouvir dos leais ao seu regime). Há quem defenda que o endividamento interno e externo do país decorrente do excessivo fortalecimento bélico do país na era Makonnen ainda é o grande responsável pelo baixíssimo desenvolvimento econômico e social do país até hoje. Um golpe de estado dos dissidentes do poderoso exército imperial foi o que pôs o governo a termo em 1974. Um ano depois, o “leão conquistador da tribo de Judá” faria uma operação na próstata. A versão oficial diz que a morte de Selassie foi por conta de complicações decorrentes desta cirurgia. Já a família defendia que o ex-ditador teria sido envenenado em seu próprio leito de repouso. A investigação nunca foi concluída: o corpo havia sumido. Problemas sérios de interpretação envolviam as duas versões: No caso de morte “natural”, estavam sendo colocadas em xeque a eficácia e a veracidade da “medicina branca” à qual o doente teria se submetido. No caso de assassinato, poderia haver interesses estrangeiros (americanos?) financiando o ato criminoso em si e o novo regime que o consumou. Muitos preferiram ignorar tanto a versão “ruim” quanto a “pior” e preferiram ouvir a versão que Marley e Garvey defendiam: a de que Hailé Selassie teria forjado a própria morte para exilar-se, retornar fortalecido e continuar seu projeto em nome de Jah (abreviatura de Iawveh – Javé ou Jeová, como grafado na Bíblia). E ainda havia uma última vertente: a de aceitação da morte de Selassie, mas com a proclamação da sua futura ressurreição, garantindo à Majestade Imperial o status de novo messias do povo negro!

A morte fez o governador decadente virar mito. Bob Marley não só passou a compor reggae tendo como eixo quase exclusivo a filosofia rastafári, como se apropriou do termo reggae dizendo que derivaria do espanhol rege, que se refere à “música para o rei”, que pode ser tanto um rei terreno quanto um celestial. Em 1976, Marley compôs a canção “War”, cuja letra é praticamente na íntegra o discurso de Selassie na Liga das Nações (ahhh, você sabia que aquelas palavras sobre “cor da pele” e “brilho dos olhos” lhe eram familiares, né?). Somou-se a isto a regravação da música “I shot the sheriff” por Eric Clapton, que dominou as paradas americanas durante o ano de 1975. Estava decretado: Bob Marley, o reggae e o rastafári seriam, dali por diante, elementos irreversivelmente indissociáveis.

O rastafári


Basicamente, o rastafári (evita-se adiante o termo rastafarianismo, pois o sufixo –ismo é uma herança do sistema babilônico, rejeitado e combatido pelos rastas em geral) é uma fusão de dogmas e elementos do passado e do presente, tradicionais e modernos, cristãos e animistas. Para muitos, é nada mais do que uma evolução de uma entidade que já existia antes: a Igreja Ortodoxa Etíope; para outros, é uma sub-vertente daquela.

A dieta rastafári

Os rastafáris adotam 9 principios, sendo o 2º principio: "Coma apenas I-tal", um termo rasta que significa puro, natural ou limpo. Uma série de leis de dieta e de higiene foi formulada para acompanhar a doutrina religiosa Rastafari. Um verdadeiro Rasta não poderia ingerir álcool, tabaco, mas usaria a Cannabis (maconha ou ganja) de forma ritual. São basicamente vegetarianos, dando uso escasso a alguns alimentos de origem animal, ainda assim proibindo o uso de carnes suínas de qualquer forma, peixes de concha, peixes sem escamas, caracóis e outros. A comida I-tal seria o que Jah ordenou que fosse: "tudo o que não tem barbatanas ou escamas, nas águas, será para vós abominação." "Melhor é a comida de ervas, onde há amor, do que o boi cevado, e com ele o ódio." Estas são, basicamente, as leis alimentares do Levítico e do Deuteronômio do Velho Testamento. É comida que nunca tocou em químicos, é natural e não vem em latas. Quanto menos cozinhados, melhor; sem sais ou condimentos, possuindo assim maior quantidade de vitaminas, proteínas e força vital. As bebidas são, preferencialmente, herbais, como os chás. A bebida alcoólica, o leite ou o café são vistos como pouco saudáveis.

Dreadlocks

O dreadlock nasceu através dos primeiros soldados selvagens defensores do regime de Tafari Makonnen e repelentes das invasões italianas. Com os cabelos grandes e parafinados, os guerrilheiros se assemelhavam a leões, búfalos e outras feras do deserto e da savana, colocando ainda mais medo em seus inimigos. Passados os períodos de guerra, ficou a tradição e a ressignificação espiritual; no rastafarianismo atual, cada "dread", de forma abreviada, é ligado espiritualmente com alguma parte do corpo. Isto ajuda a validar o fato de os rastafaris evitarem quaisquer cirugias, amputações e extirpações, complementado com as informações abaixo na subseção “medicina”.

Maconha

Ganja e marijuana são algumas designações para a Cannabis, uma erva psicoativa milenar. Ela é usada pelos Rastas, não para diversão ou prazer, mas sim para limpeza e purificação em rituais controlados. Alguns Rastas escolhem não a usar. Muitos sustentam o seu uso através de Gênesis 1:29: “E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento.”

A Medicina

A tradição Rastafari rasta não permite o uso (especifico para a cura de alguma doença) de qualquer tipo de remédio que não seja natural (ervas medicinais, por exemplo). Outro costume rasta, relacionado com a medicina, é a não presença de hospitais, médicos, etc... A origem desses hábitos provem de Génesis 1:29, pois 'Jah' refere o uso de todo tipo de erva ou planta proveniente da face de toda a terra. Além disso, possuem a crença de que apenas 'Jah' (ou tudo que provém de sua grandeza, 'naturais') pode 'curar' um enfermo, e nenhum outro ser (médicos, etc.) possui essa capacidade.

Simbologia

Tanto a bandeira Rastafari quanto a da Etiópia têm origem na bandeira tradicional da Etiópia, cuja associação entre cores e símbolos é: vermelho para o sangue dos mártires, verde para a vegetação e amarelo para as riquezas minerais (em especial o ouro). Como a Etiópia é o berço do pan-africanismo e da Organização da Unidade Africana (atual União Africana, também com sede na Etiópia), muitos outros países africanos também adotaram as mesmas cores em suas bandeiras (ver lista). O diferencial da bandeira Rastafari é o Leão de Judá nela inserido. Regueiros “noobs” frequentemente confundem a bandeira do Rastafari com a da Jamaica.

Outra morte, outro mito


Claro que a descrição acima do rastafári é insuficiente: mas pelo menos os costumes precisam ser aqui trabalhados para se entender um pouco de como a coisa toda é interpretada hoje (e antecipo que tal interpretação coletiva também é incompleta, o que enseja a redação deste texto todo).

No auge de sua carreira, em 1977, Bob Marley viu sua unha do dedão do pé cair, havendo embaixo uma ferida que ele pensava ter sofrido durante uma partida de futebol durante férias tiradas no Brasil. Como a ferida não cicatrizava, foi feita uma consulta médica que constatou que a lesão, na verdade, era um melanoma maligno. Foi-lhe sugerida a amputação do hálux, ideia que o cantor rejeitou de cara, pois feria o princípio rasta de manutenção da integridade de todas as partes do corpo, ao mesmo tempo em que prejudicaria sua dança nos palcos. Com muita relutância, aceitou a extirpação tão somente do tumor; a medicina “branca” é considerada vã e enganosa pelos rastas em geral. Um ano depois, viu-se que a cirurgia não havia surtido efeito nenhum: metástases ocorreram no cérebro, no pulmão e no estômago. Tal desenvolvimento estaria associado ao uso excessivo de maconha: o vapor da erva fumada possui mais de 2000 substâncias carcinogênicas, em comparação com as 400 do tabaco industrializado. Outro fator associado seria a falta de higiene com relação aos dreads: os médicos da autópsia de Marley chegaram a afirmar que foram encontradas mais de 60 espécies diferentes de piolhos no couro cabeludo do rastaman, algumas delas portadoras de microparasitas, como toxoplasmas.

Um dos seus doze filhos, Ziggy Marley, revelou recentemente que foi nesta época de 77/78 que o pai aceitou o cristianismo, entendendo que havia muitas semelhanças desta religião com o rasta, e decidiu fazer um tratamento mais sério, levando-se em conta que o corpo, sendo considerado um templo sagrado, também precisava de cuidados. Isto explica muito da repentina mudança do esquema composicional de Marley com os Wailers: nesta fase final da carreira do cantor, as músicas de militância social e exaltação rastafari foram dando lugar a formas de reggae mais suaves e românticas (a balada “Turn your lights down low” é o exemplo “master” desta transformação), além de outros hinos religiosos que não faziam referências tão diretas ao rastafarianismo e poderiam ser tocados em qualquer igreja católica, tais como “I know a place”.

Marley nos deixaria em 1980, reconhecido como principal mensageiro da paz entre os povos, do fim da discriminação entre os negros e da luta em prol da África como um todo, marcando o início de uma década que ainda teria a campanha “USA for Africa” (mais conhecida pela sua música tema, “We are the world”), a ascenção dos negros nos esportes olímpicos ou não-olímpicos, o combate ao Apartheid Sulafricano e a libertação de Nelson Mandela. Enfim, nos anos 80, a África estava “na moda”.

E hoje, especialmente no Brasil?


Chegaram os anos 90, a virada do milênio, e nada. Nenhuma das profecias se concretizou. O mundo não acabou. A “Babilônia moderna” não caiu. Hailê Selassie I não ressucitou. O Éden negro não se reergueu. A África continuou sendo palco de diversos conflitos étnicos e territoriais. Em 1991, após a queda de Mengistu Haile Mariam, o líder do golpe de estado que derrubou Selassié, foi revelado que os restos mortais do antigo chefe de estado tinham sido conservados no porão do palácio presidencial. Somente em 2000 foi feito um funeral digno, com a presença da família de Bob Marley.

Mas a música jamaicana de Bob Marley continuou rodando mundo afora. Na Inglaterra dos anos 80 surgia a geração 2-tone, que promovia a mistura entre negros e brancos sem qualquer forma de discriminação, com festas animadas por bandas que tocavam tanto ska (como o Bad Manners) quanto reggae (como o UB40). E, assim como as rádios americanas pegavam na Jamaica, as rádios jamaicanas passaram a transmitir sinais amplificados ao restante das ilhas do Caribe, que por sua vez também passaram a ter rádios que tocavam reggae em ondas curtas ou médias. Este spread chegou até o estado brasileiro do Maranhão, que ganhou o apelido de “Jamaica brasileira” graças à popularidade que o reggae obteve naquela região.

Mas somente a associação entre reggae, rastafari e Bob Marley não seria tão suficiente para que tal popularidade ocorresse, diríamos assim, no mundo todo. E não houve esquecimento: deixar tal informação para o final também foi intencional. Isso mesmo que você pensou: a MACONHA é o quarto elemento indissociável da cultura aqui discutida. Esta erva sempre foi consumida antes, mas somente a partir da contracultura e do rastafari que ela passou a estar vinculada a nichos socioculturais específicos. E foi também a partir desta época dos anos 70 que a planta passou a ser qualificada como droga ilegal pela OMS, de tal forma que cada país que tenha interesse em permitir o uso controlado da canabis em seu território terá que justificar muito bem sua política de saúde pública, distribuição, ética de consumo e combate ao crime organizado para que este aval seja dado, além de ter que aguentar constante pressão deste mesmo organismo mundial para combater problemas recorrentes e administráveis como o narcoturismo (fluxo de viagens constantes e tentativas de naturalização/imigração permanente de pessoas que visam tão somente o consumo legalizado do entorpecente). É o que ocorre na Holanda e na Jamaica, países “legalizados”. Fora isso, leva-se bastante tempo para se desenvolver uma "ética do consumo" através das expressões culturais. Aqui no Brasil, pode-se definir como pedra de toque deste desenvolvimento o som do Planet Hemp, o primeiro grupo a promover na sociedade e na juventude um debate "aberto" sobre o uso da erva.

Mas o uso da canabis não estava restrito aos rituais religiosos? Este argumento geralmente cola muito bem pelo fato de sempre ter havido no mundo todo, em diferentes épocas, diversos rituais religiosos baseados no uso de substâncias entorpecentes que conduzissem a estados de transe que facilitariam os contatos com os seres superiores justificadores das existências de tais dogmas. Servem de exemplo o Oráculo de Delfos e seus vapores de enxofre e metano, os chás alucinógenos do xamanismo e do moderno Santo Daime, os fermentados de milho e mandioca dos kuarup amazônicos e até mesmo o próprio vinho das missas católicas. Assim, se para os rastas o próprio corpo já é um templo sagrado, não há a necessidade de se aguardar um culto para se acender o baseado, e isto explica o fato de o canabismo ser controlável na teoria e constante na prática.

Na verdade, a falácia debatida no parágrafo acima esconde um fator renegado pela maioria dos filósofos e ideólogos dos movimentos legalizatórios e que embasa a proibição da OMS: o THC (tetrahidrocanabinol – composto ativo da canabis) tem um potencial ocultamente alto de dependência química e psicológica. Ocultamente porque, para justificar seu vício, o usuário monta uma “biblioteca” de argumentos e informações falaciosas (tradicionais, culturais, religiosas, etc.), além de se dar a falsa sensação de controle sobre o consumo (isto aparece em expressões do tipo “às vezes fico até 2, 3 semanas sem fumar”, “só dou uns dois e jogo o resto fora” ou “conheço tanto quarentão, cincoentão que fuma até hoje e tá de boa, é mó gente fina, enquanto outros se deterioraram novos na ‘química’”, entre outros que a gente ouve por aí). A autojustificação (justificar para si) de uma falácia como subsídio da exojustificação (justificar para outros) da mesma talvez seja o pior fator compositor da dependência psicológica. E, infelizmente, não está presente somente no caso dos entorpecentes.

Mas, se é assim, porque então a grande maioria das pessoas que ouvem reggae, fumam maconha e compactuam com os ideais de Bob Marley não se torna rasta “de uma vez”? A resposta parece estar resumida em uma única expressão de bastante desprestígio em nossa cultura urbana, mas que no presente desenvolvimento de ideias não deve estar associada ao demérito, e sim a uma tentativa de adaptação e síntese ideológica entre sujeito, ambiente e espírito de época: poser.

Em entrevista do ator Leandro Hassum para o jornal Destak, por ocasião do lançamento do filme “Até que a sorte nos separe”, segue um trecho digno de nteresse peculiar:

JD: Um dos maiores sucessos da internet é sua cena sobre religião. Nela, você conta como é difícil se adaptar a alguma crença. Já escolheu alguma?
Leandro: Na verdade, não (risos). Eu sou um cara que oro muito para Deus, acredito muito, mas se você me perguntar um nome que eu dei para essa religião, ainda não dei, não. Mas é aquilo. Sou um bom brasileiro e vou participando um pouco de todas elas.

Tal pensamento pode ser sintetizado pela opção tão popularizada pela atual periferia da web, o Orkut: “Tenho um lado espiritual independente de religiões”.  Isto porque, na atual globalização cultural a um clique de distância, é impossível não ter contato com somente uma religião, ainda que o indivíduo passe a vida inteira praticando somente uma ou mesmo nenhuma. Tal contato se dá através de livros, programas de TV, convívio com seguidores, publicações na internet, entre várias outras formas.

Faça você mesmo uma simulação: pegue todos os aspectos bons e ruins das religiões que você conhece. Em seguida, cruze as oposições diretas (ex.: a existência de um só Deus contra a de vários – escolha um dos lados). Aplique filtros afetivos e, se necessário, renomeie ou recrie conceitos. Pronto: você criou, de maneira consciente (porque muitos o fazem inconscientemente), a tua própria religião.

Neste caldeirão cósmico, o rastafarianismo é só mais uma proposta. E ela cai fácil, como todo sistema humano de organização cósmica, em pontos de contradição. Como combater o sistema babilônico (cujo atual desdobramento seria, na visão rasta, o capitalismo metropolitano) quando se é dependente do dinheiro e da tecnologia para, inclusive, fazer reggae? Como virar vegetariano ou comer sob as leis do Levítico quando, nos grandes centros urbanos, quase não há espaços para hortas de subsistência e você pode comer um hamburger do McDonald’s ou do Burger King em menos de cinco minutos em vez de ter que ter o trabalho de plantar e colher em determinados tempos e épocas? Como associar o consumo de maconha aos ideais de paz, amor e espiritualidade quando a ilegalidade desta e de outras drogas faz o tráfico se fortalecer a ponto de virar um poder paralelo muito mais confuso, violento e coercitivo do que o próprio Estado? Como fugir da sociedade quando cada vez mais refúgios naturais vão dando lugar a novos bairros e cidades criados para abrigar uma população que simplesmente não para de crescer dentro de um mundo que não cresce junto com esta? Isto não significa que tais “exigências” ideológicas ou religiosas seriam impossíveis. Mas denota que são bem difíceis e, por isso, nem todos conseguem atendê-las. Algumas seriam, de fato, uma tremenda chatice...

Assim, do rastafarianismo “poser”, ficaram, na maioria das mentes dos jovens e adultos que tiveram contato com tal ideologia e desenvolveram afetividade com a mesma, apenas os aspectos positivos denotados no primeiro parágrafo, os quais constituem uma espécie de “imaginário de refúgio” perante as violências refinadas e silenciosas que ocorrem no dia-a-dia urbano: preconceitos por cor ou origem, discriminação por classe social e poder aquisitivo, sistemas ocultos de manutenção de desigualdades, estresse acentuado devido à alta carga de trabalho e/ou de estudos... e não vai adiantar nada perguntar ao regueiro moderno qual o sentido de ele acreditar que um ex-ditador belicista etíope que se dizia descendente direto de Salomão e que morreu em 1975 irá ressucitar e transformar a África num Éden negro sem miséria e conflitos étnicos, onde todos tocarão reggae, louvarão a Bob Marley como o profeta que expandiu a voz do rastafari para o mundo, fumarão maconha plantada por eles próprios todos os dias livremente e trabalharão dia sim, dia não. Dizendo nestes termos, seria inconcebível de se pensar. Mas seria aplicável, neste caso, o mesmo princípio que norteia, por exemplo, o axé baiano. “Não tem que ter sentido. Só tem que ser legal”.

Quanto à dificuldade em se seguir uma determinada ideologia em sua integralidade, segue uma proposta de teorização do fato por Theodore Adorno, na sua famosa “Palestra sobre lírica e sociedade”:

“Recomenda-se vigilância, sobrerudo, perante o conceito de ideologia, hoje debulhado até o limite do suportável. Pois ideologia é inverdade, falsa consciência, mentira. Ela se manifesta no malogro das obras de arte, no que estas têm de falso em si mesmas, que deve ser apontado pela crítica. Mas dizer de grandes obras de arte, que têm sua essência no poder de configuração e apenas por isso são capazes de uma reconciliação tendencial das contradições fundamentais da existência real, que elas são ideologia, não é simplesmente fazer injustiça ao próprio teor de verdade dessas obras, é também falsear o conceito de ideologia. Este não afirma que todo o espírito serve apenas para que alguns homens eventualmente escamoteiem eventuais interesses particulares, fazendo-os passar por universais, mas sim quer desmascarar o espírito determinado a ser falso e, ao mesmo tempo, apreendê-Io conceitualmente em sua necessidade.” (In ADORNO, T. Notas de Literatura I, Volume I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo, Ed. 34, 2003. Página 68)

Traduzindo: não basta somente definir ideologia como “o particular travestido de universal”; é preciso decodificar os processos e as justificativas de tal transfiguração. De fato, só seria possível seguir uma ideologia em sua integralidade tendo uma vida totalmente igual à de seu criador. Havendo o contrário por via de regra, sempre haverá contestações, adaptações e reinterpretações, e é isto que forma nosso caldeirão de diversidade cultural, ainda que algumas opções sejam mais ou menos coerentes do que outras.

Mas você não precisa deixar de curtir reggae por causa deste texto, OK?

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